sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Cinema e literatura - parte 1: A qualidade de um filme independe da obra literária



Introdução
            
(Adaptação, Spike Jonze - 2002)
   
De um modo geral, há duas fontes de inspiração de um roteiro cinematográfico, a saber: um material original ou adaptado. A primeira pode ser meramente derivada de uma fonte de inspiração de um roteirista, ou até mesmo um trabalho por encomenda de alguém com pouco dote de escrita, mas que apenas teve a ideia básica de alguma história potencialmente interessante. No segundo caso, é comum que filmes sejam baseados em obras literárias. Mesmo nesse caso isso não exclui a existência de um roteirista que deve fazer a adaptação da linguagem literária para a cinematográfica. Apenas por essa breve e óbvia constatação já podemos facilmente reconhecer uma diferença básica entre literatura e cinema: enquanto a primeira é meramente textual, a segunda é majoritariamente visual. Além disso, pela simples existência de (grosso modo) metade dos filmes não serem realizados a partir de adaptações literárias já seria um forte indicativo de que essas duas expressões têm seus próprios mecanismos de geração de arte. Embora utilizem abordagens distintas não segue disso que uma é melhor que a outra; mas, sim, a realização, de ambas seguem caminhos distintos entre si. 

                Os dois principais equívocos quando alguém compara cinema e literatura podem ser resumidos da seguinte maneira: i) a tentação de qualificar o primeiro  em função do segundo e ii) a alegação que o entendimento de um determinado filme não pôde ser total em virtude do espectador não ter tido ainda a oportunidade de ler o livro.

                É natural que o sentimento de satisfação receba, na maior parte das vezes, uma avaliação superior relativo ao livro em detrimento ao filme. O filme, que evolve imagens em movimentos, acaba de certo modo escravizando e/ou desapontando as imagens mentais que o leitor eventualmente pudesse ter feito antes de assistir ao filme. Assim, a questão que deve ser ressaltada é o fato de que cinema e literatura fazem uso de abordagens e recursos distintos. 

                Pretendo mostrar que a comparação direta com o livro - no sentido de qualificar a obra cinematográfica -, é equivocada. Além disso, tentarei argumentar que uma obra cinematográfica tem vida independente da obra literária – a primeira não precisa depender de recursos externos para ser compreendida. Eventuais casos de falha no entendimento do filme se devem às escolhas narrativas e/ou temáticas equivocadas pelos responsáveis da película, e, portanto, o filme não deve precisar de apoios externos a si mesmo na tentativa de fazê-lo entender melhor.

                Esse pequeno ensaio será dividido em das partes que, embora correlacionadas, podem ser lidas de maneira independentes. 

1 -  A qualidade de um filme independe da obra literária

                O espectador ao qualificar o filme como bom ou ruim deve reconhecer um aspecto importante relativo ao ritmo de uma película. Todo roteirista está submetido ao tempo de filmagem; ou seja, independente da história contar algo sobre um dia, décadas ou a vida de uma pessoa, o tempo médio disponível é de 120 minutos. E isso já revela muito sobre as diferenças de abordagens entre cinema e literatura. No cinema, é necessário pensar as páginas como tempo, e não como texto(1). É privilégio da literatura poder estender-se em sua narrativa o quanto o autor desejar, o que ocorre, geralmente, em função do quanto o autor prefere ser detalhista na descrição dos personagens e do ambiente à sua volta. O que muitos espectadores não entendem é o que o cinema também faz essa descrição – e igualmente pode ser mais ou menos aprofundada dependendo do cineasta -, mas os recursos para executar isso são distintos aos da literatura. Em um sentido mais geral, esses recursos são específicos da composição cinematográfica; ou seja, a composição de um cenário ou do estado de espírito de uma personagem não precisa necessariamente ser feita apenas por texto. E de fato, no cinema o texto no sentido de apresentação de diálogos pode ser vista como secundário, ou pelo menos como importância comparável aos demais recursos como ausência ou presença trilha sonora, figurino, locação (externa ou interna), presença ou ausência acentuada de som ambiente, iluminação, paleta da fotografia, disposição dos objetos no cenário, atuação do ator (com foco em sua face revelando algum sentimento, ou do corpo inteiro?), etc. Nesse sentido, a montagem é importante para dar o ritmo (rápido, frenético, lento, etc.) apresentado na versão final do filme. 

              
(Ben Hur: Uma narrativa de Cristo, Fred Niblo, 1925)
 
Há filmes evidentemente descritivos sem necessidade de diálogos. Em um filme, nem tudo é explicado pelo diálogo; pois não precisa ser conduzido assim, e de fato poucas vezes o são. Por exemplo, ao utilizar planos mais longos, um realizador pode mostrar um conjunto de situações – cenário e estado de espírito de um personagem -, através de imagens, composição de quadro e elementos em cena. Ocorre que o espectador com o olho pouco treinado para todas essas riquezas visuais e auditivas poucas vezes percebe a relevância técnica na composição do filme. 

                Entre outras coisas, o tempo limitado para se contar uma história faz com que um cineasta competente faça o bom uso dos recursos supracitados. Do mesmo modo, o espectador disposto a entender melhor a linguagem cinematográfica não terá dificuldade em entender que avaliar a qualidade de um filme dever ser uma prática que depende somente do próprio filme, e de maneira alguma da sua obra de adaptação. Isso quer dizer que um livro pode ser dito melhor que o filme (ou vice-versa), mas apenas como consequência subjetiva de avaliação. Em outras palavras, a justificativa de um filme ser bom ou ruim não deve ser feita em função de uma comparação direta de duas linguagens que utilizam recursos distintos. Um livro não pode ser dito que é ruim porque não houve trilha sonora ao fundo, justamente porque isso é impossível ao recurso estritamente textual. E se uma das razões de um filme ter sido mal feito for a trilha sonora isso é culpa do próprio filme (da escolha equivocada dos realizadores), mas não da obra na qual foi eventualmente  adaptada.

               
(Fahrenheit 451, François Truffaut - 1966)
Um dos mais importantes cineastas da história do cinema, Stanley Kubrick, entendia bem essa questão que permeia a falsa comparação com a literatura, e foi feliz ao afirmar que “O cinema está mais próximo da pintura e da música do que da literatura.” Em alguns momentos da história do cinema houve cineastas que se preocuparam com a liberdade do cinema frente à literatura. Na década de 50, François Truffaut era um inquieto crítico de cinema que futuramente seria co-responsável pelo movimento nouvelle vague. Entre várias pautas defendidas pelo cineasta incluía-se a defesa de autoria sobre o diretor, enquanto criticava as adaptações literárias feitas pelos roteiristas – ou seja, na tentativa de dar voz à liberdade autoral ao diretor, Truffaut dizia que, pelo menos o cinema francês à época, ao estar à mercê dos estúdios e roteiristas, estava fazendo mais literatura do que cinema(2).
               
                Um engano comum que parece ser fonte dessa falsa analogia é a ideia de que o filme, ao passar pela avaliação do espectador, dependa única e exclusivamente do livro para ser entendido. Esse equívoco é abordado melhor na parte 2 desse ensaio, mas é relevante dizer nesse momento que existem critérios objetivos para analisar a qualidade de uma obra cinematográfica. Alguns deles são a coerência, complexidade e originalidade. Deve-se destacar que tais critérios não devem ser vistos necessariamente de maneira independentes, mas complementares. Por exemplo, um filme complexo em sua narrativa não resulta automaticamente que seja uma obra que contenha coerência ou intensidade; por outro lado, uma obra original pode ser coerente porém não complexa, e mesmo assim isso não precisa resultar em um filme ruim. E tudo isso pode ser analisado sem depender da obra literária no qual o filme teve inspiração(3).

            
(O mágico de Oz, Victor Fleming - 1939)
   
Outra evidência da independência do filme diz respeito à função que os elementos visuais tomam forma entre si. Elementos aparentemente sem importância não são colocados na tela ao acaso. Tomemos o exemplo do filme “O mágico de Oz”. O cachorro Toto pode significar várias funções: a disputa pela posse do animal causa a fuga de Dorothy; a cor acinzentada do cachorro é colocada em oposição ao brilho da cidade de Oz, criando dessa forma uma conexão entre o preto e o branco da cidade de Kansas onde o filme tem início. Portanto, é necessário enfatizar que tanto a narrativa quanto o estilo possuem funções na linguagem cinematográfica. A maneira como isso tudo é mostrado no filme que pode ser questionado e analisado, e, portanto a independência do filme com relação à obra de adaptação é algo natural e justificado.

                Compare dois exemplos (trechos) de crítica cinematográfica [O hobbit - a desolação de Smaug]. Obseve como as ideias de forma, conteúdo, coerência, complexidade e originalidade citadas acima estão presentes nos textos:


“Não acredito que seja possível dizer que A Desolação de Smaug seja melhor ou pior do que o primeiro capítulo, pois um complementa o outro e vice-versa. Há, claro, Smaug, que ocupa todo o ato final d'A Desolação, e é uma adição carismática, ameaçadora e das mais interessantes do mundo de Tolkien até o momento nas telas do cinema. Neste caso, a antecipação foi justificada, e Smaug é um personagem deveras admirável, que faz valer o segundo capítulo. O filme, se de alguma forma se diferencia do primeiro capítulo, é no tom mais sombrio – talvez um pedido dos fãs atendido por Jackson. Não há piadinhas de anões ou sobre anões (inclusive, é o filme com menos humor de todos os cinco até aqui da hexalogia) e, embora esses personagens não sejam tão admiráveis quanto Aragorn de O Senhor dos Anéis (por exemplo), apresentam algumas facetas que os tornam razoavelmente complexos (pelo menos Thorin, que apresenta sempre um ar de dualidade que coloca em dúvida até a lealdade de Bilbo para com ele).”
Fonte: Alexandre Koball, Cineplayers
 
(O Hobbit - A desolação de Smaug,
Peter Jackson - 2013)

“...os novos personagens introduzidos em O Hobbit pouco oferecem em termos de carisma ou personalidade: ora, se não demorei a memorizar nomes de atores que desconhecia antes de A Sociedade do Anel (como Dominic Monaghan, Orlando Bloom e Billy Boyd, por exemplo), posso dizer com certa tristeza que olho para a relação de nomes contida no início deste texto e não faço a menor ideia de quem interpreta qual anão da confraria (com exceção de Richard Armitage, que vive o Príncipe Thorin, e Ken Stott e James Nesbitt, que já conhecia de outros trabalhos). E o pior: não posso afirmar tampouco que queira memorizá-los, já que não deixaram qualquer impressão ao final das quase três horas em que os acompanhei pela Terra-média. Formando um grupo cujos integrantes se diferenciam apenas por suas aparências físicas, os anões de O Hobbit são um vácuo emocional e dramático – e em nenhum momento me importei de fato com o destino que teriam ao final da jornada. Por sorte, Ian McKellen retorna com a força que já esperávamos de Gandalf, demonstrando carisma, autoridade e bondade, ao passo que Martin Freeman, como Bilbo, é hábil ao explorar a hesitação e a fragilidade do personagem mesmo mantendo-se como figura periférica no filme que intitula.”
Fonte: Pablo Villaça, Cinema em cena

               Note que a comparação imediata com o livro não traria argumentação alguma para defender, do ponto de vista qualitativo, o ponto de vista da crítica. Não se afirma com isso que a crítica cinematográfica é um tribunal que julga definitivamente a qualidade da obra, tampouco o que o espectador deve ou não ver. Muito pelo contrário, a atividade crítica é um incentivo para o amadurecimento analítico do espectador com relação a uma obra de arte.  

               Apresentei nessa primeira parte algumas maneiras de identificar elementos fílmicos que auxiliam na compreensão da obra; assim, pretendi mostrar que a qualidade de uma produção deve ser analisada somente por ela mesma, de maneira a não depender da obra literária. Na próxima parte tentarei abordar um aspecto que-embora semelhante ao abordado nessa parte -, é um equívoco recorrente de parte do público: a defesa de que o entendimento do filme é sempre, ou eventualmente, melhor quando foi feita previamente a leitura do livro.

Referências

1)      Ana Maria Bahiana, Como ver um Filme.
2)      Richard Neupert, A History of the French New Wave Cinema.
3)      David Bordwell & Kistin Thompson, Film Art  - An Introduction.



terça-feira, 10 de dezembro de 2013

41 anos da missão Apollo 17 – e gênese do negacionismo ingênuo

[Texto publicado no blog da Liga Humanista Secular do Brasil -Bule Voador]


 Harrison Schmitt no solo lunar
O dia 11 de Dezembro é uma data de comemoração para a espécie humana. Há exatamente 41 anos, um dos programas mais ambiciosos de exploração já realizados começava a terminar. Foi o pouso na lua da Apollo 17. A sexta e última missão do projeto Apollo levou os três últimos astronautas ao nosso satélite natural, sendo a missão que mais tempo permaneceu na superfície do astro.

É verdade que o projeto Apollo estava inserido em um contexto político de corrida espacial, mas isso de maneira alguma diminui o mérito deste acontecimento que foi uma das maiores aventuras já realizadas. A mistura de curiosidade, política, ciência e tecnologia permitiu um dos maiores feitos da nossa espécie. Apesar disso, ainda hoje há pessoas incrédulas sobre a veracidade das viagens.

Rover utilizado na missão
Uma característica curiosa de uma parcela dos negacionistas é sua ingenuidade. Não raro encontramos alguns que mal sabem da existência de seis missões. Como se a quantidade de imagens que eles mesmos usam para tentar negar as idas à lua fosses apenas da missão de Julho de 1969. Nesse sentido, é interessante notar que poucos deles foquem a atenção nas outras cinco viagens – a tentativa do negaciocismo algumas vezes é tão ingênua e mal informada que parece ter pouco interesse em investigar honestamente suas proposições. Não é objetivo do presente texto rebater as mais comuns argumentações envolvendo a falsidade das viagens(1),  mas é curioso notar que a grande maioria dessas alegações são justamente os fenômenos físicos que se esperaria em um local com pouca gravidade constituído de chão lunar branco reflexivo (regolito), com relevo irregular e apenas uma fonte de luz (bandeira “tremendo”, as sombras, pegadas e a ausência de estrelas nas fotos são exemplos disso). Esse é o típico caso de uma boa aplicação do ditado popular “peixe morre pela boca”. Parece ser típico de movimentos conspiracionistas/negacionistas criarem um baluarte onde nenhuma argumentação racional tem vez.
Para entender o movimento que defende a fraude é necessário recordar pelo menos dois momentos chaves. Em 1974, o escritor William Kaysing lançava o livro intitulado “Nós nunca fomos à lua”. O livro é uma pequena obra na qual consolidou os principais argumentos que são utilizados até hoje pelos negacionistas.
A agenda conspiracionista ganhou novo impulso em 2001 com o documentário produzido pela Fox chamado “Teoria da conspiração: Nós pousamos na lua?”. Sem perder o ensejo, o pessoal da Fox decidiu que o programa seria narrado pelo ator Mitch Pileggi (famoso na época pela série Arquivo-X). Mas isso é irrelevante, pois o que realmente foi curioso é que a grande voz do documentário foi ninguém menos que William Kaysing. Depois de quase 30 anos o escritor continuava com sua rentável tese de que todo o programa de viagem à lua foi uma fraude em conjunto com a Área 51 (não poderia ser diferente!). Mais absurdo ainda, dizia que a NASA não tinha capacidade técnica de ir até a Lua, e que a pressão durante o período da guerra fria forçou os americanos a forjar toda a história da viagem. Várias mentiras e deturpações foram ditas no documentário (2), como no caso de tentativas patéticas de gerar um sentimento de aceitação do negacionismo ao dizerem que na época 20% dos americanos não acreditavam na ida à lua em 1969.

Apesar disso tudo, é verdade que não pisamos mais na lua há 41 anos. Ainda assim, sondas de pouso (não tripuladas) continuaram a ser enviadas ao solo lunar até meados da década de 70. Aliás, a negação das viagens à lua geralmente acontecem acompanhadas de desconhecimento histórico de programas espaciais paralelos. Por exemplo, apenas 7 anos após a primeira ida à lua a sonda Viking aterrissava em Marte. E se tudo correr bem haverá um novo pouso de uma sonda na lua ainda esse mês, dessa vez comandada pelos chineses.
Para aqueles dispostos a ver ou rever um pouco sobre o que acontecia há 41 anos atrás fica a dica do vídeo.

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(1)    Uma boa palestra que refuta quase todos os argumentos conspiracionistas pode ser encontrada aqui e um bom resumo escrito aqui. Escute também o áudio do programa Fronteiras da ciência da rádio da universidade da UFRGS.