domingo, 28 de dezembro de 2014

O cinema nacional em 2014


Entre Nós ( Paulo Morelli)
Eis uma expressão típica de alguém que recentemente viu um filme: "Poxa, o filme é muito bom. Nem parece que é cinema nacional." Então diagnóstico mais provável é: Você tem visto pouquíssimos filmes nacionais, pois esta é a média da qualidade de nossas produções. De fato, filme brasileiro de boa qualidade não é nenhuma aberração: Nossas produções estão entre as mais versáteis do mundo, tanto em forma como em conteúdo. E quem pensa que esta alegação é muito ousada basta checar os títulos lançados no ano de 2014.

Hoje eu não quero voltar sozinho (Daniel Ribeiro)
Como referência, lembremos o informe da ANCINE relativo ao primeiro trimestre do ano:  Foram vendidos 7,3 milhões de ingressos para filmes nacionais (comparando, a venda de filmes estrangeiros foi 4 vezes maior). Mais do que isso, três filmes brasileiros se posicionaram na lista das dez maiores bilheterias deste período: Muita Calma Nessa Hora 2, S.O.S Mulheres ao Mar e Até que a Sorte nos Separe 2. Este último, por exemplo, superou o número de salas em que estreou filmes estrangeiros como 300: a ascensão do império e Robocop. Apesar destes números animadores (representa quase 16% a mais do que o mesmo período do ano passado) nenhum dos filme desses três filmes revelam a diversidade do cinema atual. Ou melhor, eles fazem parte de um universo de filmes bem mais rico. É evidente que esses três exemplares atingiram maior público porque foram lançados em um maior número de salas: Maior número de salas implica maior bilheteria. Entretanto, popularidade não implica necessariamente em qualidade, muito menos em totalidade (tendo em vista a diversidade de nossos filmes). Não é por acaso, portanto, que recentemente a ANCINE propôs uma discussão para evitar filmes ocupando mais de 30% das salas de cinema (não tem sido um ato de imposição como alguns pensam, justamente porque a decisão tem sido pensada após discussões maduras com os exibidores e distribuidores, os quais inclusive têm aceitado a ideia [leia mais aqui]) -- justamente para evitar a prática de uma concorrência predatória e abusiva.

Tomando a cidade de Porto Alegre como uma referência (representa uma média do que chega aos cinemas), segue uma pequena lista dos filmes que tiverem exibição em 2014. A lista refere-se aos filmes que eu vi (a cotação é minha, e de maneira alguma deve ser entendida como um guia para o que deve ou não ser visto).



No total, foram 28 filmes. Alguns comentários:
- Numericamente, essa quantidade equivale a mais de 2 filmes por mês ao longo do ano. Um número razoável, embora ainda pequeno, frente a quantidade de filmes produzidos anualmente. Mas, certamente, é uma boa oferta ao espectador (sobretudo para aquele que diz não existir boas produções nacionais, mas não vê os filmes).

- É notável a diversidade de gênero, temática e criatividade. Compare, por exemplo, dois maravilhosos títulos como Educação sentimental e o O lobo atrás da porta; são não apenas tematicamente distintos, mas ilustram a riqueza de obras tão diferentes que fica difícil pensar que algum dos dois não agrade algum público (em alguns casos ambos agradam o mesmo espectador, como foi o meu caso).
- No que diz respeito à qualidade do filme, apenas dois eu classifiquei como regular (Getúlio e Meninos de Kichute).


- Todos os filmes estavam com acesso relativamente fácil. Certamente metade deles estiveram em cinemas de shopping (embora, infelizmente, com número de cópias reduzidas).
- Esta é uma pequena lista. Evidentemente há muitos outros filmes que não consegui ir ver. Muitos deles tivereram estreia comercial, e por algum motivo não pude conferir. Ao longo do ano registrei alguns títulos que tiveram exibição e eu não vi. Segue alguns exemplos: A Farra do Circo, Em busca de um lugar, Jogo das decapitações, Até que Sbórnia nos separe, Tim Maia, Janeiro 27, De volta, As Aventuras do Avião Vermelho, Brincante.
- E há outros títulos (alguns promissores) que ainda não tiveram exibições, como: Uma passagem para Mário, Gata velha ainda mia, Entre vales, Insônia, Jogo de xadrez, O grande Kilapy, O segredo dos diamantes, O menino no espelho.
- Obviamente, há outros que devem ter estreados e me passou desapercebido neste momento.
O lobo atrás da porta (Fernando Coimbra)
- Curiosamente, alguns detratores do cinema nacional pensam que nossas obras se resumem  às globochanchadas. Algumas dessas obras são, eu reconheço, de qualidade duvidosa. Mas é um pouco desonesto manifestar desagrado ao cinema nacional se o sujeito se limita a essas obras e, ainda pior, se opõe à medidas inclusivas como a da ANCINE (que deve permitir mais diversidade de filmes). Rubens Ewald Filho comenta sobre isso: “Por alguma razão o espectador normal ou costumeiro só vai assistir as comédias, em geral cariocas, com a mesma meia dúzia de atores, rendendo mais ou menos, dependendo de serem melhores ou piores.”
- Os que não veem os filmes (por desinteresse ou mesmo por pouco acesso) não estão em condições de levar adiante a lógica torta “eu não vi, logo não existem”. Eles existem, e não há evidência melhor para isso que os próprios filmes (já comentei sobre isso aqui e aqui).
  - Minha defesa ao cinema nacional é uma consequência da qualidade dos filmes, e não porque eles são nacionais. Se eu fosse entrar na onda da síndrome do cachorro, a tendência provável seria eu torcer o nariz e evitar os filmes. Abandonar a preguiça e o preconceito fílmico pode ser uma experiência cultural recompensadora. Os filmes estão por aí. Basta vê-los!

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Natal para ateus?

Natal é para todos e todas que quiserem.

Existe uma justificativa histórica: Muito antes da existência de Jesus, já existia o costume dos povos pagãos como a árvore, o pinheiro e a troca de presentes. Um dos festivais mais conhecidos foi a Saturnália, um festival romano que honrava o deus Saturno no mês de dezembro (quem datam de pelo menos dois séculos antes de Cristo). É correto dizer que o Natal foi um "agregado" de várias culturas pagãs que a igreja católica adotou. 

Ser ateu não é, necessariamente, ser anti-religião. Não só pelo fato de existirem religiões ateístas (como o budismo e o jainismo), mas também pela mero reconhecimento que pessoas têm crenças (e sim, ateísmo é uma crença) pelas mais diversas razões e, por isso, são dignas de respeito (respeito à pessoa, o que não significa que crenças não possam ser criticadas e discutidas). Parte disso explica meu afastamento das ideias mais exageradas como aquelas incentivadas por Richard Dawkins. Alguns estariam dispostos a entender que a religião é um dos maiores males existentes, e portanto devemos aderir a uma batalha (não-violenta) para extingui-las. Eu penso que essa tese não é apenas um delírio do ponto de vista operacional, mas também é moralmente equivocado. O desejo de homogeneizar crenças pode ser igualmente perigoso quanto a ortodoxia extremista adotados por alguns em um mundo com pluralidade de crenças.

Para alguém que já foi um religioso frequentador de cultos, posso dizer por experiência (embora minha subjetividade não seja verdade absoluta) que participar de eventos religiosos pode ser muito recompensador. Mas, como diria Carl Sagan, nem tudo que é reconfortante necessariamente releva uma verdade. Não pretendo me alongar nas razões pelas quais abandonei a crença cristã. O que está em causa neste momento é: Ser ateu não é fazer parte de uma elite intelectual que tem acesso privilegiado da verdade; da mesma forma, ser cristão não dá direito exclusivo a uma comemoração chamada Natal. Naturalmente que o cristão deve entender a data de uma maneira distinta daquela do ateu. Mesmo assim, até mesmo o ateu pode, se quiser, comemorar o nascimento de Jesus. Não vejo nenhuma contradição nisso, desde que entenda a data como comemoração do Jesus histórico (e não mitológico -- aliás, muito provavelmente longe de aparentar aquele semblante caucasiano espalhado pelas mensagens bonitinhas) que ajudou a espalhar boas práticas morais. De qualquer forma, a chamada regra de ouro ("Não faça aos outros o que você não quer que seja feito a você") nem é original de Jesus. Há registros que pensadores em épocas anteriores chegaram a mesma conclusão de maneira independente. Alguns chamam de ética da reciprocidade: Apareceu coisas semelhantes no budismo, no zoroatrismo, no judaísmo, no confucionismo, no hinduísmo, e recentemente (em comparação com as demais religiões) no cristianismo.

Da mesma forma como o Natal não é exclusividade dos cristãos, qualquer arte insipidara e produzida por religiosos pertencem a toda a humanidade. Eu sou grande admirador da banda U2 (uma banda evidentemente cristã, inclusive com letras explícitas) e fascinado pela obra cinematográfica do russo Andrei Tarkovsky (um religioso declarado, inclusive em seus filmes). Isso revela algo muito peculiar: Sentir-se envolvido por uma manifestação cultural não é exclusivo de uma crença. Basta a arte existir no mundo que qualquer indivíduo pode ser vulnerável a ela. E não é apenas empatia que está em causa. Acredito que qualquer ação que não possa ser inclusiva -- ou seja, que coloquem pessoas em guetos e as classifiquem preconceituosamente --, é uma ação condenável moralmente. E para entender isso apenas emoção pode não ser suficiente. É necessário investir um pouco de razão.

Confraternizar com pessoas com crenças diferentes não é apenas culturalmente enriquecedor (desde que a confraternização não traga nenhum dano --psicológico inclusive -- ao sujeito), mas é também reconhecer racionalmente que um mundo plural e diverso é a melhor resposta que humanidade pode dar no sentido de evitar os excessos destrutivos que têm sido, infelizmente, uma marca registrada deste frágil planeta

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Maconha incomoda muita gente. Sua descriminalização incomoda muito mais.


                                    Também publicado no blog da Liga Humanista do Brasil (LiHS) - Bule Voador

Artistic Marijuana Leaf By Imahb Dsme
O cheiro da maconha pode incomodar muita gente. Mas odor desagradável não é um bom argumento para proibir consumo. Para entender isso é necessário apenas o simples paralelo: Proibiremos o consumo de cigarro porque seu cheiro também incomoda. Em locais públicos, a melhor maneira de compatibilizar os fumantes e não fumantes é justamente criar locais específicos para o consumo. O consumidor também pode ser educado, como boa parte dos consumidores de cigarro são, ao fazerem a pergunta “você se importa que eu fume aqui?”
Não é cabível continuar com a criminalização. É possível defender isso de duas maneiras complementares, uma científica e outra moral.
A política antidrogas atual no Brasil não é apoiada em evidências: À luz dos melhores resultados empíricos que dispomos, a maconha causa menos danos físicos e sociais que outras drogas facilmente disponíveis (álcool e cigarro). Disso não segue, obviamente, que a maconha seja isenta de efeitos colaterais. Entretanto, são mais sutis e menos agressivas a tal ponto que os benefícios do uso (medicinal) pode superar as eventuais contraindicações. Uma delas é que com a liberação comercial deve vir junto o uso médico.
A relação com o argumento moral é a seguinte: Não parece aceitável criminalizar uma droga que não apenas apresenta potencial de uso médico, mas que já existem terapias relativamente confiáveis em que seu uso pode ser aplicado — como servir de aliada a tratamentos de alguns tipos de câncer. Alternativamente, outra defesa moral é possível, e que pode ser defendida a despeito do uso medicinal: É limitar a liberdade dos outros que a usem como consumo recreativo; alguém não gostar de algo não deve implicar proibição geral. Além disso, parece ser apenas uma falsa preocupação o desejo de proibir em nome da saúde. Preocupação real seria muito mais efetiva se, antes de ditar o que o outro pode ou não consumir, o sujeito cuidasse da sua própria saúde, e parasse de fumar e/ou beber álcool. O que não deixa de ser curioso: Muitos dos adeptos da proibição da maconha consomem ambas as drogas, ao mesmo tempo.
Uma possível objeção comum é dizer que há outras preocupações imediatas do que a descriminalização da maconha, mesmo reconhecendo-se seus efeitos comparativamente menos nocivos. Essa ideia, porém, é uma típica falácia da prioridade. Investir um pouco de atenção em uma coisa não impede que outras sejam atendidas concomitantemente.
E por que não seria prioridade? Atualmente, no Brasil, o indivíduo flagrado é tido como criminoso. A lei atual é incapaz de distinguir claramente quem é consumidor de quem é traficante. E qual a evidência disso? O inchaço no sistema prisional: Além de possuir a terceira maior população carcerária no mundo (só perdendo para a China e Estados Unidos), estima-se no país uma população carcerária por tráfico de entorpecentes (tipificação de crime não violento) superior a 130 mil pessoas (cerca de 1/4 do total de presos). Para ter uma ideia da extensão desse número, basta somar os outros dois crimes numericamente expressivos (roubo qualificado e o roubo simples) e obteremos um valor que não chega a 90 mil presos. Além disso, é bem reconhecido o problema geral nas prisões do país: presos em locais inadequados, superlotação e pessoas vulneráveis à maus tratos e desrespeito aos direitos humanos. Em visto disso, ajudar a desafogar o sistema prisional (que muita gente que reclama não dá boas alternativas) parece uma prioridade. Sem contar a truculência policial que não sabe lidar com quem é consumidor, sobretudo os mais pobres.
                Aquele que se preocupa com prioridades não deixa de acentuar – com razão –, possíveis dificuldades de aplicações, como tempo e custo. Acontece que do ponto de vista operacional é muito fácil executar. Basta uma lei entrar em vigor e alguns poucos ajustes de recursos materiais. Aliás, já existe proposta (PL 7270) que não visa “liberar” (de fato, o uso da maconha já é recorrente), mas sim regular o uso. Isso significa que o projeto prevê uma quantidade máxima permitida ao usuário recreativo, e também pretende fazer com que os municípios possam arrecadar dinheiro com as vendas (parecido como o que Uruguai fez e semelhante ao projeto já proposto na Argentina).
                Argumentos científicos e morais podem ser defendidos também por uma análise história. E duas são as razões disso: O fracasso da chamada “guerra às drogas” e da Lei seca nos Estados Unidos. Tomando em conjunto, ambas fornecem evidências de que o proibicionismo aumenta a violência e traz danos socioeconômicos que poderiam ser minimizados caso a maconha fosse descriminalizada.
                É fácil manter uma postura proibicionista vastamente apoiada por vários veículos de comunicação. Difícil, entretanto, é alinhar estas posições diante das evidências históricas e da realidade do país. Os argumentos mais comuns do proibicionismo são mantidas por preconceito popular, sendo incapazes de resistirem ao escrutínio de informações científicas que revelam a urgência de se pensar em uma nova política sobre o uso de drogas.

sábado, 27 de setembro de 2014

O bem humano e a felicidade aristotélica



(A Helping Hand, de Émile Renouf)

 "A vida não é de se brincar porque em pleno dia se morre"
(Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres - Clarice Lispector)

Talvez com uma ênfase maior que os demais filósofos, Aristóteles preocupou-se em responder o que é o bem humano. Dessa forma, o grego influenciou muitos pensadores e ainda hoje é objetivo de interesse reflexivo sobre um tema caro à nossa sociedade: a felicidade humana.
Tomando um exemplo motivacional, a seguinte situação prática é proposta: Um nadador amador, mas com capacidade suficiente para reconhecer locais perigosos, presencia um indivíduo em afogamento. No caso, nosso nadador é o agente moral e salvar a pessoa é o fim desejado. Considerando sua experiência prática, ele reconhece que tem condições de ajudar a pessoa em apuros. Duas situações podem acontecer:
Agente moral (i) - No momento em que o andador chegava para socorrer, um tronco de árvore que passava no interior do rio atingiu a pessoa em afogamento; eventualmente, ela acabou morrendo.
Agente moral (ii) - O nadador conseguiu salvar com êxito o indivíduo que se afogava.

Dentro do contexto aristotélico, pode-se perguntar o seguinte: Os dois agentes morais são virtuosos? Quais dos dois é mais virtuoso? Algum dos agentes é mais feliz que o outro? Qual a relação entre felicidade e virtude?

Aristóteles reconhecia a experiência humana como ponto de partida. Afim de entender com mais detalhes o que está inserido no contexto de "vida humana" faz-se necessário explorar um pouco o que o grego entendia como vida prática. Em "Ética a Nicômaco", Aristóteles começa ressaltando que as nossas ações se dão de modo dependente uma das outras, ou seja, fazemos coisas (escolhas, buscas ou ações) que visam a algum bem. E, mais do que isso, há um bem último ao qual todas as coisas visam:

"Toda a arte e toda a investigação, e similarmente toda a ação e escolha, parecem visar um qualquer bem; de acordo com isto, declarou-se corretamente que o bem é aquilo que todas as coisas visam." (Ética a Nicômaco 1094a 1-3)

Importante destacar que para Aristóteles há uma convertibilidade entre bem e fim -- ou seja, a concepção do bem é teleológica. Dito de outro modo, para o ser humano alcançar o que é bom para ele, precisa tomar o bom como uma finalidade. Isso é particularmente relevante na ética aristotélica, pois reconhecer algo como bom não implica tomar algo para si como bom. Vale destacar, novamente, que toda escolha visa um bem. Dito isso, Aristóteles divide o bem (o fim) em instrumental e intrínseco. O primeiro caracteriza-se como algo que busco em função daquilo que posso alcançar com essa através dele (exemplo: dinheiro), e o segundo eu busco por ele mesmo, ou seja, tem valor por si (exemplo: conhecimento). Entretanto, um bem ser intrínseco não impede que também seja instrumental. Consequentemente, Aristóteles defende a existência de um fim "finalíssimo" -- aquele que nunca é desejável em vista de outros fins --, que é precisamente aquela finalidade a qual atende a dois critérios, a saber: i) completude e ii) autossuficiência. O primeiro diz respeito a coisas que mereçam ser buscadas por elas mesmas, enquanto que a segunda é aquilo que quando isolado torna a vida desejável e carente de nada. Dito dessa forma, o critério ii) segue-se necessariamente de i).
Aristóteles identifica a felicidade (“eudaimonia”) como o único bem que pode ser completo e autossuficiente. Em outras, a felicidade (embora esse termo seja um pouco problemático enquanto tradução de “eudaimonia”) é o bem supremo. Nesse contexto, a virtude é uma condição necessária, mas não suficiente no intento de atingir o bem maior.
Outro ponto de esclarecimento acerca da natureza da felicidade merece destaque. Aristóteles nega a equivalência de felicidade com dinheiro, honra e/ou prazer físico. Disso não se segue que tais elementos não são importantes, apenas não devem ser a razão principal pela qual nossas ações são direcionadas. Dessa maneira, o que é realmente bom para o ser humano é determinado por aquilo que os seres humanos são por natureza (Shields, C.). Um bom ser humano é aquele que executa bem a função humana. E essa função é estruturada na noção teleológica que Aristóteles assume.

Dizer que a felicidade é o bem mais elevado talvez pareça uma trivialidade e o que se quer é uma expressão muito mais clara do que é tal coisa. Talvez isto surja caso se identifique a função (ergon) de um ser humano. Pois tal como o bem, e o bom sucesso, de um flautista, de uma estátua e de todo o tipo de profissão — e, em geral, de seja o que for que tenha uma função e uma ação característica — parece depender da função, o mesmo parece verdade no que respeita ao ser humano, se de facto um ser humano tiver uma função.” (Ética a Nicômaco 1097b 22-1098a 4)

            De maneira sucinta, o argumento da função toma como premissa que a atividade característica dos seres humanos é o raciocínio. O objetivo é tornar mais claro o que é o bem humano. Como já dito, Aristóteles defendia uma noção teleológica, e, nesse caso, as coisas têm, em geral, uma função. Assim, o bom exercício dessa função está relacionado ao sucesso do ser do qual ela é função. Fazer algo bem é equivalente a fazer isso de acordo com a excelência própria da atividade (Lawrence, G.). Destarte, a vida humana deve ser algum tipo de vida ativa constituída de razão, pois essa é algo próprio e exclusivo ao ser humano.Vale lembrar, portanto, a definição canônica do bem humano (Ética a Nicômaco 1098a 161-17):

O bem humano é uma atividade da alma(1) que exprime a razão de um modo virtuoso.

A metafísica aristotélica defende que a virtude moral é a perfeição da parte desiderativa da alma2. Essa observação, embora relevante, pode ser melhor entendida se nos deteremos um pouco mais na virtude moral. Esta é em vista da eudaimonia – ou seja, a virtude é consequência das ações, e não o objetivo3, no sentido de que ser virtuoso é condicionada à eudaimonia. O objetivo é a eudaimonia. Assim, devemos enfatizar que ser virtuoso não é condição suficiente para ser feliz; naturalmente há fatores externos, tais como amigos, beleza, uma condição financeira satisfatória, etc. Ser virtuoso é uma prática que leva a um hábito, ou a uma capacidade de desejar ações boas. Parte disso explica a atenção de Aristóteles no educador moral. A presença deste seria uma condição facilitadora para tornar o indivíduo virtuoso.
Uma vez entendido que o bem do humano é a atividade racional segundo a virtude, é útil, nesse ponto, trazer à tona o conceito de deliberação e como este se relaciona com a felicidade. Deliberar pode ser entendida como um processo racional que considera alternativas em vista de um fim factível (realizável). Ou, ainda, deliberar é um processo racional em vista de um fim. Assim, lembremos a tese aristotélica: "Deliberamos não sobre os fins, mas apenas sobre os meios." Nesse sentido, a felicidade é a única coisa que nunca pode ser meio – ou seja, não deliberamos sobre sermos felizes (uma maneira branda de entender isso é que todos os indivíduos querem ser felizes). Entretanto, deve ficar claro que deliberamos, sim, sobre os atos que compõe a felicidade. Dessa forma, embora não entremos em detalhes, é relevante pontuar que a deliberação é consequência daquilo que Aristóteles chamava de razão prática. Mais ainda, sendo a eudaimonia aquilo o que é bom para o ser humano, aquele que melhor determina isso é o sábio prático.
A sabedoria prática seria uma espécie de guia para que o indivíduo identificasse o bem maior de maneira correta. Desse modo, a incapacidade de organizar e planejar a vida para alcançar um único fim se deve a ausência da sabedoria prática; escolher fins ruins, ou inadequados (como prazer ou dinheiro), também revela alguma deficiência dessa sabedoria. Grosso modo, o sábio prático é capaz de identificar os melhores meios que conduzem a um bom fim (deliberação).
Nas palavras de Ackrill, a virtude moral (a excelência do caráter)  é uma mediana determinada pelo padrão seguindo aquilo que o sábio prático empregaria. Essa observação fica mais clara ao recordarmos a importante tese defendida por Aristóteles: a sabedoria prática implica necessariamente virtude moral, e vice-versa. Embora já tenha sido apresentado indicativos, é relevante destacar que uma não é a mesma coisa que a outra (identidade). É nesse sentido, também, que Aristóteles enfatiza o aspecto prático da aquisição das virtudes morais. A questão é que não há como tornar-se virtuoso moral sem, ao mesmo tempo, adquirir sabedoria prática. Além disso, a sagacidade é uma condição necessária para a sabedoria prática: Ela (sagacidade) é tida como a habilidade de colocar em prática escolhas deliberadas, como: o desejo reto (o fim que é bom) e o raciocínio correto (as coisas em vista de um fim, ou seja, a prudência). Colocando de outra forma, embora a virtude moral seja distinta da prudência, ambas coexistem -- uma não existe, necessariamente, sem a outra.
Embora Aristóteles afirme que a boa ação é a melhor vida para o ser humano, também afirma que a atividade meramente contemplativa é a que se identifica melhor com a eudaimonia. Antes de abordar esse aspecto conflitante, exploraremos um pouco mais o papel da contemplação. 
Para Aristóteles, a sabedoria filosófica é a mais digna de ser buscada -- ela é o estado saudável da alma teórica (theôria). Desse modo, a virtude da alma contemplativa (sophia) é tida como o que Aristóteles indica ser a felicidade perfeita. Ainda, parece que sabedoria filosófica "produz" sabedoria filosófica, no sentido de proporcionar o seu vir a ser, ou pelo menos fornecer meios para isso acontecer. Portanto, a atividade que mais se identifica com a felicidade é contemplação. Sucintamente, algumas razões podem ser defendias nesse sentido: i) natureza do objeto, pois diz respeito a objetos eternos, duráveis e universais; ii) é a mais contínua - no sentido de que cansa menos e é a mais prazerosa; iii) é a atividade mais auto-suficiente e iv) é aquilo que há de melhor em nós (não no sentido moral).
Podemos agora explorar melhor o problema: A virtude implica sabedoria prática, e esta serve de meio instrumental para a sabedoria filosófica, e, por fim, esta gera felicidade. Tendo em vista esse raciocínio, a consequência é que os valores das ações morais significaria que são dispensáveis quando não produzem sabedoria filosófica. Outra forma de colocar o problema é com a seguinte pergunta: Como, se é possível, conciliar teórica ou conceitualmente as exigências da vida prática e da vida contemplativa? Adianto que defenderei uma tese conciliadora, e portanto será necessário revisar alguns pontos acerca da eudaimonia, vida prática e teórica. Em suma, parece que identificar esse problema não parece condizer com o projeto moral defendido por Aristóteles, no sentido de ignorar a natureza não apenas das virtudes mas também da eudaimonia.
A primeira observação necessária pode ser encontrada em Ackrill, que defende o seguinte: Ações morais visam promover ou tornar possível a contemplação -- as virtudes morais são facilitadoras para a obtenção da sabedoria prática, e, portanto, a contemplação. Disso dito, não se segue que i) não é possível ser feliz na ausência da contemplação e ii) só é possível ser feliz se o indivíduo for um sábio prático. Disso se segue que Aristóteles parece indicar que a felicidade produzida pela sabedoria filosófica difere da felicidade produzida pela sabedoria prática. Além disso, o sábio prático é aquele que delibera bem; portanto, parece pouco plausível que a felicidade fosse impedida para o sábio prático. Dito dessa forma, podemos conciliar com o que Aristóteles comenta sobre graus diferentes de felicidade: 

A segunda vida mais feliz é a que está de acordo com o outro gênero de virtude; pois as atividades deste gênero são humanas. Pois fazemos apenas coisas justas e corajosas e os outros tipos de coisas de acordo com este género de virtude em relação uns aos outros […] e todas parecem humanas.” (Ética a Nicómaco 1178a 9-14)

Conforme discutido por Shields, “a felicidade admite graus, sendo a melhor felicidade a contemplação, mas a segunda melhor felicidade, que é à mesma genuína, é o gênero de felicidade que abrange todas as formas de virtude humana, tanto intelectuais quanto morais.” Ao entendermos essa espécie de graus de felicidade, não estamos apenas mostrando elementos textuais que defendem a tese conciliadora, mas também está em causa, embora discutível,  o seguinte: Trata-se de adotar uma perspectiva de doutrina inclusiva da eudaimonia. É útil entender "fim inclusivo" de acordo como o observado por Ackrill: algum fim que combine ou inclua dois ou mais valores, atividades ou bens; ou, ainda, como um fim no qual, dentre seus diferentes componentes nenhum membro é consideravelmente mais digno de valor do que outro. Embora a tradução de eudaimonia para felicidade seja imprecisa, o que estamos colocando aqui é grosseiramente entendido que a felicidade é um estado inclusivo composto de bens independentes. Assim, é necessário abandonar a ideia restrita que identifica eudaimonia como "felicidade" ou "prazer", e sim a entender como "a melhor vida possível", onde "melhor" não sugere, necessariamente, um sentido moral estrito (Ackrill, JL). Além disso, a alegação de que existe algum fim  desejado em vista dele mesmo não pressupõe, como comenta Ackrill, que existe "um único objeto de desejo", como se o fim fosse algo "monolítico"; aliás, as referências que defendem a arte política como arquitetônica sugerem uma concepção inclusiva da eudaimonia. Destarte, não significa que a eudaimonia seja sinônimo de fim último no sentido de desejar um fim único em detrimento de outros. Resumidamente, a eudaimonia é composta por partes, ela não é dominante.
A defesa da ideia de um fim que inclua todos os demais fins desejados independentemente, ou seja, um fim inclusivo que engloba uma pluralidade de fins separados e subordinados a um fim mais elevado pode ser melhor ilustrada por um exemplo. Não parece ser insensato afirmar que podem existir vários graus de finalidades mesmo nos fins desejados por si mesmos: F1 pode ser algo buscado por si mesmo,  e assim também é F2; e considerando F1 mais final que F2, nada impede que F2 contribua como constituinte de F1. Tomando o exemplo de Ackrill: o prazer pode ser tido como intrinsecamente digno de escolha (um fim em si mesmo), sendo um elemento da Eudaimonia. Esta inclui todas as atividades intrinsecamente dignas de escolhas. É aceitável a tese de que Aristóteles aponta a eudaimonia como sendo uma atividade que visa uma harmonia entre os diversos fins humanos, ou seja, a realização e harmonização de fins primários (aqueles fins em vista dos quais todas as outras coisas são feitas) num todo coerente (Zingano, MA). Em certo sentido, é isso que significa entender o fim supremo como ser inclusivo em detrimento de dominante.
Por outro lado, poder-se-ia objetar que a ideia do bem inclusivo sofreria  problemas em afirmações como "o bem para o homem vem a ser a atividade da alma segundo a virtude, e, se existir mais de uma virtude, segundo a melhor e a mais completa" (sophia, a virtude da razão teórica). Entretanto, pode-se entender "virtude completa" o conjunto de todas as virtudes. Como defendido por Ackrill, a conclusão do argumento da função faz referência à virtude completa, e não a alguma virtude particular.
Uma consequência disso é sobre a relação da sophia com a sabedoria prática. A última não controla a primeira, mas a torna possível. Disso não segue que a única coisa possível da sabedoria prática seja promover a theôria. Em outras palavras, Aristóteles não parece estar assumindo que se determinada ação não promove a theôria, então ela não será digna de ser buscada. Ainda assim, defende que a theôria é a atividade mais digna. O que parece estar em causa é o seguinte: Devemos exercer tanto quanto possível a theôria. Assim, outras atividades podem ser exercidas quando a contemplação não pode ser exercida, pois essas outras também são dignas de serem buscadas. A felicidade, portanto, não é negada na ausência da atividade contemplativa, mas ela é, sem dúvida, uma felicidade maior quando na presença dessa atividade. De qualquer forma, parece que dever haver um compromisso entre ações virtuosas com a theôria. Além disso, a vida apenas de theôria não parece ser uma vida feliz. Enfim, o valor da contemplação não significa que esta seja o provedor de um critério único e último para a correção das ações.
Tomando tudo o que já foi dito, a tese conciliadora pode ser resumida: a sabedoria prática proporciona tempo livre para exercer a sabedoria filosófica. Mesmo que a contemplação seja a atividade mais auto-suficiente, isso não parece implicar que o filósofo é mais auto-suficiente que o virtuoso moral. Uma razão disso é que se identificarmos as condições externas para tornar possível exercer uma atividade, o filósofo é o que requer condições mínimas para isso. Em outras palavras, o filósofo precisa de menos instrumentos e pessoas que o agente moral. Do ponto de vista da eudaimonia, concluímos o seguinte: Já que não deliberamos sobre sobre os fins, mas sobre os meios, e a felicidade é a única coisa sobre a qual não deliberamos, segue-se disso que um determinado fim poderá independer de minhas ações.
Tendo em vista o exposto, é possível resumir os questinamentos no início do texto da seguinte forma: Supondo que o agente moral obteve uma deliberação correta -- ou seja, a melhor possível enquanto ser humano --, mas não atingiu o fim desejado (agente moral i), ele não será menos virtuoso caso tivesse atingindo esse mesmo fim (agente moral ii). Dito dessa forma, no contexto do projeto ético aristotélico, será mais feliz o agente moral ii.
Vale salientar, por fim, que atos virtuosos não são escolhidos porque se é filósofo, mas porque se é humano. Dessa forma, a felicidade não é negada para aquele que não contempla, muito embora, conforme já dito, a ausência da contemplação implique o que Aristóteles sugere de felicidade segunda.
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1.
A noção de alma aristotélica não é a ideia geral que se assemelha a algo como um espírito. A metafísica aristotélica fazia uma distinção entre potência e ato. E ainda, de ato primário (e potência primária) e ato secundário (e potência secundária). Exemplo: Embora eu não fale, eu tenho a possibilidade de adquirir conhecimentos da língua francesa, ou seja é uma potência primária; quando eu começo a estudar estou desenvolvendo a potência segunda; e quando estiver falando mais ou menos fluente isso se caracteriza um ato (colocar em atividade aquilo que é possível). Nesse sentido, a alma é uma potência primária: torna algo (ser vivo) que terá capacidade de realizar atos secundário (operações vitais), e que não necessariamente devem acontecer. Portanto, não é algo tangível. O conhecimento em francês também não é um objeto tangível, mas não é, por isso, algo fantasmagórico. Aristóteles reconhece que todos os seres vivos têm alma, mas supõe haver uma hierarquia entre os seres vivos, começando com as plantas, que têm apenas nutrição, passando pelos animais não-humanos, que acrescentam a percepção à nutrição, e acabando nos seres humanos, que são também racionais.

2.
Grosso modo, a alma dos seres humanos é dividida em irracional e racional. A primeira ainda é composta de uma parte vegetativa (nutrição, crescimento e reprodução) e outra desiderativa (desejos, apetites e impulsos) e a segunda composta de uma parte prática e outra teórica. As virtudes do caráter (morais) derivam da alma desiderativa e virtudes do intelecto derivam da alma racional. Há uma comunicação entre a alma desiderativa e a racional, à medida em que a parte desiderativa "dá ouvido" à razão e nela "respinga" -- mas só na parte prática que compõe a alma racional.

3.
Interessante notar que a tese normativa moral aristotélica, bem como outras, sugerem recomendações distintas dos comportamentos que de fato acontecem. No caso em questão, tem sido evidenciado que as pessoas, ao fazerem escolhas, julgam o resultado das ações não pelo seu valor absoluto mas se o resultado envolve ganhos ou perdas comparado a um ponto de referência, e que essas pessoas pesam mais as possíveis perdas do que os eventuais ganhos (para mais informações ver os artigos "Prospect Theory" e "Rational Choice and the Framing of Decisions", de Daniel Kahneman e Amos Tversky).
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Referências

Aristóteles, Ética a Nicômaco
Lawrence, G. O bem humano e a função humana.
Shields, C. Aristotle
Ackrill, J.L. Sobre a Eudaimonia
Zingano, M.A. Eudaimonia e o bem supremo em Aristóteles