sábado, 23 de agosto de 2014

Ética, valor e aplicabilidade

Muitas áreas da filosofia não possuem aplicação prática imediata, nem a curto nem a longo prazo. Pelo fato de algo não ter aplicação prática não segue necessariamente que essa atividade/coisa seja desprovido de valor intrínseco. O exemplo mais representativo disso talvez seja o estudo da ética normativa (como as ações morais deveriam ser). É verdade que parte da disciplina da ética, pelo menos do ponto de vista descritiva (como as ações são), encontra espaço em disciplinas como biologia, história e sociologia. O estudo da ética normativa, por outro lado, é uma disciplina típica e, salvo algumas exceções, quase que exclusivamente abordada pela filosofia.

E o que é ética? Segundo o professor Desidério Murcho, uma definição negativa (o que ela não é) e outra positiva (o que ela é) é possível: não é um conjunto mais ou menos arbitrário de proibições, e tampouco é uma espécie de subjetivismo sobre as coisas; e é um conjunto de sugestões refletidas sobre o que é uma vida boa e um cuidado com os demais.

E qual a aplicação? Embora a ética (normativa) não exija, necessariamente, aplicações a curto prazo, qualquer ação é em menor ou menor grau dependente da ética. Um exemplo ilustrativo é a seguinte. Uma prefeitura tem dinheiro para realizar uma construção. Dentre as demandas principais incluem-se um hospital e um colégio. No momento não é possível contemplar as duas necessidades. Qual das duas construções deve ser preferencial? Como justificar adequadamente uma em detrimento da outra? Independente de qual for, qual o melhor local? Embora algumas dessas perguntas possam estar conjugadas com a necessidade de responder questões empíricas (sobretudo a última -- por exemplo, avaliar o local de menor impacto ambiental), elas podem prescindir de qualquer ciência empírica. E em vários casos na experiência humana é precisamente o que acontece.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Medicina alternativa no SUS

Texto também publicado no blog oficial da Liga Humanista do Brasil (LiHS) - Bule Voador

Fonte: The Guardian - Peter Macdiarmid/Getty
A ciência não é, como alguns pensam, meramente um discurso engendrado através de decisões em votos de maioria. Algumas pessoas tentam justificar decisões politicamente equivocadas ao fazerem uso da alegação “discursiva” dos resultados científicos. Essa imagem pós-moderna relativista do conhecimento científico resulta em confusão na distinção da boa e da má ciência. Como disse Susan Haack, o sucesso da ciência é devido a distinção epistêmica, e não por privilégio (1). Distinção porque, a ciência bem conduzida é, assim como outras atividades humanas (história, investigação criminal e algumas vezes até mesmo o senso-comum), caracterizada por um conjunto intrincado de boas evidências.

Existe no Brasil a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PNPIC). Um de seus objetivos é incorporar e implementar a chamadas “prática integrativas e complementares” no Sistema Único de Saúde (SUS). Pergunto-me se uma política dessas não é, antes de tudo, uma deturpação daquilo que clinicamente entende-se por saúde.

Uma dos motivos alegados para a criação da PNPIC foi em virtude da crescente demanda da população. Acontece que há algo de muito preocupante quando algumas políticas públicas são tomadas para satisfazer a (suposta) maioria das pessoas: parece um flagrante exemplo de falácia ad populum, ou uma medida que é cúmplice de uma (suposta) medicina não baseada em evidências.

Dentre as práticas suportadas estão a acupuntura e a homeopatia. E nenhuma das duas têm eficácia clínica (2). Assim, uma vez no SUS, a existência do PNPIC está incentivando, por anuência governamental, uma má saúde. É no mínimo um suporte a uma (suposta) medicina no mínimo capenga e muito questionável quanto à eficácia. Acredito que o erro é, sobretudo, ético: O estado, enquanto responsável pela boa saúde pública — ou pelo menos provedor de condições mínimas de tratamento –, está agindo de maneira moralmente condenável ao permitir que práticas de eficácia duvidosa sejam disponibilizadas à população.

Entendo que há alguma maneira de compatibilizar responsabilidade pública da saúde com liberdade privada. É precisamente reconhecer que pessoas têm o direito de estudar e criar clínicas de práticas complementares e, dessa forma, quem decide por optar por elas também não podem ser impedidas. Obviamente, isso deve acontecer apenas no âmbito privado. Por outro lado, no contexto de saúde pública, os responsáveis por ela devem responder por ações que estejam alinhadas com o melhor conhecimento médico e científico no momento. E fornecer no SUS alternativas como acupuntura e homeopatia é atuar em direção oposta a isso.

No ensaio Icarus, escrito por Bertrand Russel, o autor manifestava seu receio de que a ciência pudesse ser usada para promover poder de grupos dominantes em detrimento da tornar as pessoas mais felizes. É difícil ficar indiferente a esse manifesto ao perceber que pessoas que são responsáveis por zelar por um bem de suma importância (saúde pública) são míopes em suas decisões. Nesses casos, a previsão do Russel parece se confirmar de uma maneira curiosa: ao ignorar a ciência, afastam as pessoas não apenas de seu potencial poder curativo, mas também apostam na tentativa de torná-las inimigas de algo que, pelo menos em algum aspecto, poderiam salvá-las da ignorância.

Referências

1. Haack, Susan. Manifesto de uma moderada apaixonada. Editora PUC-Rio/Edições Loyola.
2. Ernst, Edzard & Sigh, Singh. Truque ou tratamento. Editora Record.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

O bom, o mau e o feio

*O BOM

No final de 2013, a Suécia fechou quatro presídios. O motivo: Um declínio no número de presos. E apenas 0,2% têm menos de 18 anos. Além disso, desde a década de 70 só houve dois casos de corrupção política na Suécia.

A Noruega tem uma taxa de reincidência dos criminosos em torno de 20%. A Noruega -- bem como a Alemanha e também a Suécia --, apresenta uma taxa de homicídio que não ultrapassa o valor de 1 por 100.000 habitantes.


*O MAU


Mesmo alguns países de primeiro mundo não conseguem lidar adequadamente com a criminalidade. Nos Estados Unidos, a reincidência de crimes atinge assustadoramente 60%. No Brasil, um país alegadamente em franco desenvolvimento, estima-se que a reincidência seja de 70%. A taxa de homicídios supera o valor de 20 por 100.000 habitantes (20 vezes maior que o país escandinavo) e o número de presos ultrapassa 270 por 100.000 habitantes (4 vezes maior que o país escandinavo).



*O FEIO


Naturalmente que combater criminalidade e corrupção é um projeto de longo prazo. As causas são múltiplas e não existem soluções fáceis. De qualquer forma, é sintomático o que acontece em alguns grupos aqui no Brasil. Pessoas sedentas por sangue que, muitas vezes, admiram os países supracitados -- mas fazem pouco para entendê-los melhor. São defensores de políticas que estão na contramão das ações praticadas pelos países mais pacíficos do mundo, como a redução da maioridade penal, o combate violento ao consumo drogas e o aumento do número de prisões. Aplaudem o autoritarismo ao serem cúmplice das mensagens genocidas do tipo "bandido bom é bandido morto".
São incapazes de reconhecer que impulsos possessivos levam a competição de forças, e portanto são vetores de um ciclo interminável de destruição e sofrimento. Em suma: Confundem vingança com justiça. Ignoram quando evidências apontam que violência e corrupção podem ser combatidas com maior dedicação para com a educação, transparência política e igualdade social. E que truculência policial, abuso de poder e encarceramento punitivo são respostas ineficazes para os problemas sociais.