sexta-feira, 4 de maio de 2018

Democracia e suas falhas: A apatia e a agressividade

   [Este texto é uma versão estendida do que foi publicado originalmente no jornal Diário Popular]




Em seu novo livro, intitulado “Contra a Democracia” (Against Democracy) — recentemente traduzido para o português —, o professor e filósofo Jason Brennan destaca a ignorância, a apatia e a truculência dos eleitores. Uma vez abordado isso, o autor disserta a possibilidade de aperfeiçoamento da atual democracia. Sua tese, embora com título provador, não é necessariamente algo inédito. Historicamente, ao menos desde Platão já são levantadas questões semelhantes.  Contudo, é na combinação de filosofia política com a descrição dos melhores resultados advindos de pesquisas que o autor se destaca. O que Brennan tem a nos dizer e como isso se espelha no Brasil atual?
O filósofo descreve três modelos arquetípicos de cidadãos: Os Hobbits, os Hooligans e os Vulcanos. As escolhas dos nomes são evidentemente referências aos filmes conhecidos da cultura popular, e ajudam lembrar melhor o que cada um deles representa. A raça dos Hobbits, no romance Senhor dos Anéis, se preocupam pouco ou quase nada com o mundo exterior, e estão constantemente satisfeitos em viver suas vidas mundanas. Por analogia, os Hobbits políticos são apáticos e, sobretudo, despreocupados com a política. Eles não têm opiniões fortes ou fixas sobre a maioria das questões. Além disso, têm pouco conhecimento científico e são em grande parte ignorante acerca dos eventos atuais e sobre história em geral. Vivem suas vidas sem dar muita importância para reflexão política. Os Hooligans políticos, por outro lado, mantêm ideias muito fortes e fixas. A característica que mais os marca é que são capazes de explicar e argumentar seus próprios pontos de vista, no entanto falham miseravelmente na tentativa de explicar adequadamente os pontos de vista daqueles com quem discordam. São enviesados, ou seja, consomem desproporcionalmente informações que confirmam suas opiniões preexistentes, evitando opiniões ou evidências que contradizem suas ideias pré-existentes. Os Vulcanos (em referência a Star Trek) pensam racionalmente sobre a política. Além disso, possuem opiniões cuidadosas baseadas no melhor e nas mais atualizadas informações científicas, sempre fundamentadas com o apoio das ciências sociais e filosofia. Eles mudam de ideia quando a evidência exige e, ao contrário dos Hooligans, são capazes de explicar e defender pontos de vista contrários sem que o sangue lhe corra aos olhos. Embora interessados em política, conseguem manter um interessante um tanto desapaixonado, visto que tentam ativamente evitar ser parcial e irracional.
Em posse desses arquétipos, Brennan nos apresenta várias razões que fundamentam algo não muito animador: A maioria dos votantes nas democracias, bem como os ativistas e os membros de partidos se comportam, em média, com as características entre Hobbits e Hooligans. Quase ninguém pode chamar-se um Vulcano verdadeiro. Para reforçar seu modelo, o autor apresenta uma extensa revisão dos melhores e mais atuais trabalhos sobre vários tópicos de pesquisa, passando por psicologia, economia e neurociência.
A conclusão geral é que política nos deixa mais burros. Na psicologia, a título de exemplo, o autor nos lembra das diversas deficiências de raciocínio que ficam ainda mais ampliadas quando o assunto é política: viés de confirmação, viés de grupo, raciocínio motivado, pressão de grupo, viés de disponibilidade, etc. Outro problema destacado pelo autor é que os eleitores quase nunca estão dispostos a fazer o trabalho custoso de colher o máximo de informações possíveis sobre um determinado assunto. Eis um exemplo: Um eleitor com fortes opiniões contra imigrantes tende a superestimar a quantidade de dinheiro gasto com ajuda aos estrangeiros, muito provavelmente porque sequer deve ter feito a tarefa mínima de cruzar dados ou ler opiniões de especialistas. Normalmente, a pessoa apenas buscará dados que reforçassem sua ideia original (talvez para inflar artificialmente estatísticas) ou acreditar em falsidades visando meramente ajustar sua crença na ideologia de interesse. E sobre a ignorância dos eleitores, alguns dados da realidade americana são assustadores. Segundo dados referenciados no livro, no ano de 1964 apenas uma minoria de cidadãos sabia que a União Soviética não era membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte; atualmente, 73% dos americanos não entendem o que foi a Guerra fria e 40% dos americanos não sabem contra quem os Estados Unidos lutaram na segunda Guerra Mundial.
Em recente entrevista, Brennan comenta algo muito razoável: Ter conhecimento, mesmo o mais básico, toma uma enorme quantidade de tempo, e isso é um tanto incompatível com a atual sociedade baseada em divisão de trabalho. Logo seria ilusório que as pessoas comuns tenham conhecimento suficiente para votar de maneira informada e inteligente sobre todos os temas. Para consertar isso, a solução seria colocar no poder as pessoas que se informam sobre o assunto. O paralelo é o seguinte: Da mesma forma que quando vamos a um médico queremos alguém competente e com credenciais para nos ajudar na nossa enfermidade, também queremos pessoas com competência e bem informadas para governar. Em outras palavras, não parece razoável que fiquemos submetidos a decisões de eleitores incompetentes, da mesma forma que não seria razoável alguém se submeter à força a um cirurgião incompetente.
Observando o modo como as democracias atuais operam, o cenário acima está longe do ideal. O que o filósofo faz no livro é discutir alternativas, não para pôr fim na democracia, mas para melhorá-la. Por isso ele endossa a chamada epistocracia, que nada mais é que a democracia fundada na episteme, ou seja, no conhecimento: Decisões políticas deveriam vir exclusivamente dos que têm conhecimento. Uma vez feito este diagnóstico, a maneira como proceder a este novo modelo democrático é o foco do restante do livro. Em uma de suas sugestões, Brennan comenta que um modo pelo qual poderíamos fazer isso é pela a imposição de um exame de qualificação eleitoral, semelhante ao exame de direção. A função basilar deste teste seria testar em nível geral o básico das ciências sociais relevantes e um conhecimento básico acerca dos candidatos, evitando dessa forma eleitores severamente incompetentes ou excessivamente mal informados.
Se o que Brennan diz está correto, e obviamente está aberto ao debate, alguns exemplos tupiniquins no cenário atual parecem ir ao encontro do que diz o filósofo. Meses atrás foi divulgado resultados mostrando que os eleitores desconheciam as mudanças da proposta da reforma trabalhista. Concomitantemente a esta informação foi comentada outra pesquisa de opinião na qual foi revelado que 81,3% dos entrevistados afirmaram que nenhum representante político tem credibilidade para efetuar reformas estruturais. Oras, isso parece sugerir que um eleitor, ao mesmo tempo, sabe muito pouco sobre a reforma e não está muito disposto a se informar. Aqui, o Breenan parece ter razão: A maioria dos eleitores oscila entre o desinteresse completo ou o interesse excessivamente enviesado, ou seja, oscilam em algo entre os arquétipos de Hobbits e Hooligans.
Em outras pesquisas empíricas discutidas no livro, conclui-se que as pessoas mais ativistas na política são as que mais tendem a ser Hooligans. Enquanto que ser exposto a pontos de vista contrários tende a diminuir o entusiasmo por suas próprias visões políticas, os cidadãos mais ativos e participativos tendem a não se envolver em muitas discussões políticas transversais. Em vez disso, eles procuram e interagem apenas com outros com quem eles já concordam. E quando perguntado por que outras pessoas possuem pontos de vista contrários, os cidadãos mais participativos amiúde respondem que os outros devem ser estúpidos ou corruptos. Segundo o raciocínio do filósofo, é muito comum o fenômeno de consenso identitário, no qual os interesses ideológicos de grupo estão acima da busca desinteressada pela verdade.
Nada disso se segue que as discussões sobre os temas atuais não deve ser feitas. É precisamente o contrário disso que a leitura do livro "Contra a democracia" urge. No entanto, o autor busca conciliar um novo modelo de democracia que dê respostas mais eficientes tendo em vista a pouca disposição ao estudo ou a inabilidade dos eleitores. As falhas na atual democracia são pouco animadoras porque é tanto uma parte culpa dos eleitores, e outra parte dos eleitos. A eleição do Trump e a saída do Reino Unido da União Europeia são eventos que Brennan cita como dois exemplos atuais desses tropeços das democracias. E engana-se muito quem pensa que os políticos são parte de uma classe de iluminados que têm respostas certas para tudo. A sugestão do filósofo não é inédita porque já tivemos vários outros que a defenderam, e o primeiro deles foi um dos mais antigos. Platão foi o primeiro que se tem registro a defender a epistocracia. O que Brennan faz é retomar com vigor a proposta, apresentando sugestões de implementação na democracia atual.

O medo do Glifosato é um alarme falso



                                                                         [Publicado originalmente no Diário Popular]








Molécula Glifosato


Em um recente artigo de opinião, o ecólogo Marcelo Dutra da Silva escreveu sobre a possibilidade do consumo de glifosato estar associado ao câncer. O glifosato é um herbicida de amplo espectro usado para matar ervas daninhas na agricultura e que se tornou difundido através da comercialização pela Monsanto para a agricultura transgênica. O autor alegou que o uso do herbicida resultou em (i) aumento da incidência de certos tipos de câncer e uma possível relação com a incidência de autismo, e trouxe à tona um recente estudo argentino ("Association between cancer and environmental exposure to glyphosate") que associa a exposição ambiental do glifosato com casos de câncer; portanto (ii) reforçaria a tese que "comprova a estreita relação entre o glifosato e o câncer." Minha breve pretensão é apresentar um contraponto para as alegações (i) e (ii).
Quando se fala sobre toxicidade, a primeira tarefa é examinar um parâmetro conhecido como dose letal mediana (DL50), que é a dose necessária de uma dada substância ou radiação para matar 50% de uma população em teste. É normalmente apresentado com as unidades de mg/kg e considera-se nocivo um DL na faixa de 200 a 2000 e muito tóxico um DL menor que 25 (a ideia é fácil: quanto menor mais tóxico e quanto maior menos tóxico). O DL50 do glifosato é estimado em 5600 mg/kg. Para efeitos comparativos, é facilmente encontrado que o DL50 para o sal de cozinha, a cafeína e nicotina são de 3000, 192 e 50 mg/kg, respectivamente. Isso significa que o glifosato é menos tóxico que o sal de cozinha e, desse modo, é difícil comprar a tese que este herbicida seja a causa de todos os males. Além disso, o uso do glifosato conseguiu reduzir o uso de outros herbicidas que demonstravelmente possuem efeitos nocivos (como a atrazina e o 2,4,5-T).
Um recente relatório assinado pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (com o título de "Review of the Evidence Relating to Glyphosate and Carcinogenicity") levou em consideração vários estudos revisados por reconhecidas agências internacionais (como a Agência Internacional para a Pesquisa sobre Câncer e a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos), chegando a seguinte conclusão:  "A maioria dos estudos em humanos não mostrou associação entre exposição ao glifosato e câncer. Embora um pequeno número de estudos com um número limitado de participantes encontrou uma associação fraca entre a exposição ao glifosato e o risco aumentado de linfoma não-Hodgkin, vários outros estudos não encontraram esta associação."
No ano passado, a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos emitiu o que é considerado um dos mais abrangentes exames dos estudos pertinentes sobre o glifosato já realizados ("Glyphosate Issue Paper: Evaluation of Carcinogenic Potential), no qual também concluiu que "não existe nenhuma forte evidência para a sugestão do potencial carcinogênico do glifosato, e que pequenas alterações não estatisticamente significativas observadas na carcinogenicidade animal e estudos epidemiológicos foram contraditadas por estudos de qualidade igual ou superior”.
Sobre o artigo citado pelo ecólogo, a próprio resumo dos autores originais é mais contido que a alegação alarmante comumente propagandeada: "Este estudo detectou alta poluição de glifosato em associação com o aumento das frequências de câncer em uma típica aldeia agrícola argentina, entretanto não pode fazer alegações de causalidade. Outros desenhos de estudo são necessários, mas se corroborar a concrescência de alta exposição ao glifosato e câncer." Uma lição importante de qualquer investigação empírica, sobretudo quando interpretamos estudos isolados, é que correlação não é sinônimo de causa e consequência, portanto é prudente evitar pânico moral nesses casos.
Com relação a incidência de autismo, é necessário lembrar que essa história foi espalhada depois de um artigo de um autor francês ter sido publicado em 2012 na revista Food and Chemical Toxicology. Após alguns meses de escrutínio na comunidade científica o artigo foi retratado sob suspeita que o trabalho não tivesse qualidade suficiente para fazer parte da literatura científica.
Atualmente, o esmagador consenso científico é que o glifosato é uma opção muito segura para o controle de ervas daninhas, com muitos benefícios e poucos riscos. O problema do alarmismo fácil é que incide muito tempo sobre coisas seguramente não merecedoras de tamanha atenção, ao passo que outras de ricos reais, como o risco do cigarro, começam a perder credibilidade quando alertas são emitidos.