sábado, 17 de julho de 2021

A metáfora das esteiras

 


Imagine a variedade de esteiras de uma academia. Diversas marcas, cada uma com níveis de velocidades distintos. Em condições normais, as pessoas escolhem as esteiras tendo em vista coisas variadas como aparência (quebrada ou nova), nível mínimo ou máximo de velocidade das esteiras, etc. De maneira geral, há uma certa flexibilidade nessas escolhas. O ativismo identitário tem nos colocado em uma situação estranha, pois força opções que não são espontâneas para as pessoas. Seria como chegar em uma academia com apenas uma esteira disponível (ou várias esteiras idênticas) que operam numa velocidade única, e cada dia de novo treino fica mais veloz. O modo de operação de vários desses movimentos é agir de forma autoritária tanto na escolha da esteira como na velocidade. Caso você não atualize suas crenças sobre determinado assunto na mesma velocidade que a esteira está rolando (aparentemente cada vez mais rápida), e que foi ditada verticalmente pelos ativistas da causa,  seus pés podem não acompanhar, e você irá tombar. Caso você exerça alguma liberdade, buscando outra esteira, mesmo com leves modificações da esteira que lhe é forçosamente ofertada, o ônus da escolha errada recai unicamente em você.

Exemplo real disso é a crença da "apropriação cultural". Conforme segue a crença dos identitários, uma mulher de pele branca não deve usar turbantes, pois isso violaria a sensibilidade de pessoas negras ao se sentirem ofendidas pelo uso inapropriado de pessoas que não tiveram ancestralidade africana (a essência identitária é óbvia ao tratar pessoas como grupos de cor de pele e não como indivíduos). Na visão dos identitários, você deve obrigatoriamente aceitar a esteira que te oferecem (ou seja, a crença em causa). Em um mundo de pluralidade de opiniões, qual seria o outro cenário possível? Alguém poderia rejeitar a crença dos identitários. Afinal, pessoas de cores diferentes não necessariamente têm culturas diferentes, o que parece fazer sentido no país como o Brasil. Além disso, a origem da peça nem é óbvio que seja de povos africanos (afinal, nada mais é que um tecido enrolado sobre a cabeça, e não seria surpresa que tivesse sido "inventado" mais de uma vez na história da humanidade). E mais, mesmo que seja plausível a origem da peça que é oferecida pelos ativistas, é possível acreditar, de forma razoável, que usar peças inventadas por outros povos ajuda, e não atrapalha, na convivência e celebração de diferentes povos (se assim não fosse, a vida cotidiana se tornaria impossível; um simples café, que não tem origem no Brasil, tornar-se-ia causa de "problematização"). Se essas crenças pudessem ser livremente oferecidas sem nenhuma punição de justiçamento social, revelariam uma sociedade inclusiva, plural e diversa. No entanto, a infelicidade é que a oferta de esteiras não está mais disponível. Como matéria de fato, alguns tentarão escolher a "esteira errada", mas não ficarão isentos da infame acusação de racismo.


A metáfora da velocidade da esteira é melhor vista na atual sigla LGBTQIA+. Boa parte das pessoas conseguem compreender as primeiras 4 letras. Essa compreensão parece ser consequência da velocidade de compreensão em que as pessoas estão dispostas a se dedicar ao assunto. Entretanto, o brasileiro médio (e suponho que quase toda a totalidade do globo terrestre) tem dificuldade de assimilar o que seriam as demais letras "QIA+".  O que fica bastante evidente é que a velocidade de atualização da sigla da diversidade sexual não é facilmente acompanhada pelo público externo ao ativismo. E dependendo da boa vontade dos identitários, alguém que emita opiniões divergentes está fadado a tombar das esteiras. Para polemizar pouco, eis um exemplo que uma pessoa com dificuldade de andar na velocidade imposta pela esteira poderia perguntar: Qual o grupo de pessoas estariam sendo excluídas se a letra "Q"  (significa "queer") fosse removida? Pois a palavra "queer" (ao contrário de gay) sequer faz muito sentido no cotidiano das pessoas. E continua o opinador do senso comum: Não seria de mais fácil aceitação que a sigla da diversidade fosse enxuta o suficiente para que pessoas que já têm suas vidas privadas bastante ocupadas com outras preocupações pudessem digerir as atualizações com maior facilidade? Pois é razoável se a velocidade da esteira está indo rápido demais com a atualização das novidades, a lentidão de muitas pessoas possa comprometer a causa em questão. O problema não é o convite de apresentação a novas esteiras coloridas para andar. A situação fica insustentável quando lhe é ofertado uma única maneira de pensamento, e se não acompanhar a velocidade das novas informações correrá o risco de acusações homofóbicas (ou seria "quuerfóbicas"?).

domingo, 14 de março de 2021

Os Eleitos e a Nova Religião Secular Antirracista

A “cultura do cancelamento” é mais do que apenas uma multidão (que na verdade é uma minoria barulhenta) tentando remover um twitter porque alguém feriu seus sentimentos em um comentário de poucos caracteres. Se fosse apenas isso estaria tudo bem. Coisa muito pior está acontecendo em nome da “justiça social”, e pessoas inocentes estão sendo perseguidas, humilhadas e demitidas. Na década de 90, quando nada disso aconteceria, o filme “O Demolidor” previa que pessoas cometiam o crime de “moralidade verbal” ao dizer alguma palavra proibida pelo Estado. Já na literatura, George Orwell (no livro "1984") foi muito mais enfático e profético quando alertava para os perigos da vigilância contra a expressão. 

 


Mais recentemente, o linguista norte-americano John McWhorter aceitou o desafio de falar com o grande público sobre esse fenômeno, tendo enfoque a questão questão racial. Atualmente está escrevendo seu novo livro ("THE ELECT: THE THREAT TO A PROGRESSIVE AMERICA FROM ANTI-BLACK ANTIRACISTS") e postando a cada duas semanas em seu site. Assim, a cada publicação ele pode ler comentários e atualizar seus capítulos de maneira colaborativa.

(John Mcwhorter)

                                                                 (John Mcwhorter)

O capítulo inicial é incrível e vale a pena ler para entender o que ele chama de nova religião secular emergente nos círculos progressistas. Nas palavras dele: "Todos esses casos ocorreram devido à influência de um estado de espírito que denominamos ponto de vista, mas que na verdade se tornou uma religião. Este é o antirracismo da Terceira Onda, mais frequentemente denominado "guerreiros da justiça social" ou "a multidão acordada" (n.doT.: "do inglês "woke mobe"). Pode-se dividir o antirracismo em três ondas, na mesma linha do feminismo. O antirracismo de primeira onda lutou contra a escravidão e legalizou a segregação. O antirracismo de segunda onda, nas décadas de 1970 e 1980, lutou contra as atitudes racistas e ensinou aos Estados Unidos que ser racista era uma falha. O antirracismo da Terceira Onda, tornando-se mainstream na década de 2010, ensina que porque o racismo está embutido na estrutura da sociedade, a “cumplicidade” dos brancos em viver dentro dele constitui o próprio racismo, enquanto para os negros, lutar contra o racismo que os rodeia é a totalidade de experiência e deve condicionar uma sensibilidade primorosa para com eles, incluindo a suspensão dos padrões de realização e conduta. Sob este paradigma, todos considerados insuficientemente cientes deste sentido de 'Existir Enquanto Branco' como culpabilidade eterna requer condenação amarga e ostracização, em um grau abstrato e obsessivo que deixa a maioria dos observadores trabalhando para dar um sentido real a isso, e faz as pessoas à esquerda e ao centro se perguntarem exatamente quando e por que eles começaram a ser classificados como retrógrados e deixam milhões de pessoas inocentes com medo de se perderem nos locais de uma zelosa marca de inquisição que parece pairar sobre quase qualquer declaração, ambição ou conquista na sociedade moderna."

 

 Para ilustrar com casos reais, alguns exemplos abaixo foram retirados do próprio livro em construção (outros são casos reais, não citados no livro, porém bastante recentes também): 

 

i) Em uma aula um professor ensinava linguagem chinesa para alunos de comunicação empresarial. A ideia é simples: Com a China cada vez mais influente nos mercados mundiais, conhecer algumas expressões podem ajudar a fechar bons negócios. Acontece que uma dessas expressões tem uma pronúncia que soa como a palavra proibida, a N-word como é conhecida. Veja que o professor emitiu a palavra com uma sonoridade que lembra a "N-word" em um momento que envolvia nenhum contexto racial. Mas alguns estudantes advogam que o contexto não importa mais. O resultado foi o diretor da unidade lançar um manifesto se desculpando pelo "racismo estrutural" e ainda dando uma suspensão ao professor.

 

 ii) Um jornalista do New York Times atuava desde 1976. Recentemente escreveu uma peça para o jornal relatando uma conversa de terceiros, onde os envolvidos, um deles uma menina de 12 anos, teria dito, já há muito tempo atrás, a palavra proibida em uma de suas falas. O jornalista escreveu que tinha perguntado qual o contexto da fala, pois em muitas músicas os próprios rappers usam a tal palavra. Por essa conversa ele foi demitido. 

 

iii) Após o caso envolvendo o assassinato George Floyd, a diretora de uma unidade de uma universidade americana se prenunciou dizendo: "Estou escrevendo para expressar minha preocupação e condenação dos recentes (e passados) atos de violência contra pessoas de cor. Os eventos recentes lembram uma história trágica de racismo e preconceito que continua a prosperar neste país. Eu me desespero por nosso futuro como nação se não nos levantarmos contra a violência. Vidas Negras Importam, mas também, A Vida de Todos Importam. Ninguém deve ter que viver com medo de ser alvo de sua aparência ou do que acredita.” Como fica evidente, a professora reconheceu que ainda existe um problema racial nos EUA. Mas cometeu o erro imperdoável de dizer que "todas as vidas importam". Assim, ela foi denunciada a seus superiores e rapidamente saiu do emprego, sem sequer ter permissão para se defender. 

 

iv) O Museu de Arte Moderna de São Francisco foi criticado por não se comprometer o suficiente com artistas não brancos. O presidente do museu concordou, mas acrescentou que o museu não iria interrompar de inserir na coleção artistas brancos porque isso constituiria "discriminação reversa". O que está por trás dessa expressao é simples e bem entendido pelo senco comum: pessoas não-brancas podem ser racistas; qualquer pessoa pode ter crenças que são racistas. Resultado: O presidente foi demitido? O mero uso desse termo ("discriminação reversa") foi suficiente para ele perder o emprego. 

 

v) O Departamento de Educação de Oregon recentemente encorajou os professores a se inscreverem para treinamento que incentiva a “etnomatemática”, uma tendência educacional que argumenta, entre outras coisas: i) "resposta certa" na matemática é um sintoma da supremacia branca; ii) "O conceito de matemática sendo puramente objetivo é inequivocamente falso, e ensiná-lo é ainda menos" iii) a "objetividade - descrita como 'a crença de que existe algo como ser objetivo ou neutro '- é da supremacia branca." 

 

vi) Pessoas negras devem deixar de escutar e estudar música clássica. 

 

vii) Um analista de dados em uma empresa de consultoria durante a privacidade de sua casa tuitou um estudo de um professor negro de ciências políticas da Ivy League, Omar Wasow, mostrando que, em comparação com os protestos da atualidade, os protestos contra o racismo durante anos 50 e 60 nos EUA (época das cruéis leis Jim Crow) eram mais prováveis de ser menos violentos e também menos provável de fazer os eleitores locais dessas cidades em votarem no partido republicano. Resultado: Seu chefe o chamou, o repreendeu e depois o demitiu.

domingo, 3 de janeiro de 2021

Melhores leituras de 2020

 O ano foi de isolamento. Isso ajudou tirar da prateleira livros ainda não lidos, bem como se manter informado em leituras novas sobre assuntos bastante atuais.

Selecionei aqui 05 livros que mais gostei de ler em 2020. Dou uma rápida explicação sobre eles. Todos são facilmente encontrados em versões físicas e/ou digitais (no meu caso através do Kindle). Não está em ordem de preferência. Acontece que os temas são tão diversos que cada um deles eu gostei por razões diferentes.
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                                                              # Agricultura: Fatos e Mitos #
 
Três autores (dois deles grandes nomes na área: Xico Graziano e Décio Luiz Gazzoni) trazem uma série de fatos e mitos sobre a agricultura brasileira. É um livro incrível porque consegue com sucesso satisfazer uma demanda reprimida de divulgação científica séria sobre esse assunto. Na verdade os assuntos, pois são vários: 
desmatamento, pesticidas, orgânicos, transgênicos, etc. 
 
* Lembra aquela crença que alimento orgânico é sempre e inequivocadamente melhor que o alimento convencional ? É mito.
* Lembra aquela crença que o plantio transgênico aumentou a produtividade de várias plantações e não tem risco à saúde humana? É verdade.
* Lembra aquela crença que em 2019 houve aumento de desmatamento na Amazônia Legal? É verdade, porém o maior pico de desmatamento registrado em uma série histórica ocorreu em 2004.
 
E por aí vai. Cada uma dessas está recheado de evidências e citações na literatura.
 
 
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# Irreversible Damage #
(ainda sem tradução)
 
Talvez uma das coisas exageradas do livro é o título, pois pode impedir o primeiro acesso ao livro justamente de pessoas que mais precisam dele. De todo modo, o conteúdo é ótimo porque abre uma discussão importante. A escritora fez um trabalho de investigação, mantendo a compaixão que o assunto merece. O livro foca em crianças (não em adultos), sobretudo em meninas pré-púberes. O assunto pode ser explosivo para a cabeça de algumas pessoas, mas merece atenção e discussão. Por essa razão vou me prolonga rum pouco mais nesse livro.
Segundo a tese dela, uma espécie de epidemia silenciosa está se espalhando entre as adolescentes. Após um extenso levantamento de dados, nos é apresentado a uma suposta epidemia em garotas que, subitamente, sem qualquer sinal prévio, passam a se identificar como transgênero. Embora certamente haja casos reais de crianças transgêneros em tenra idade, o que tem sido observado é que as adolescentes estão sendo induzidas a aceitar a “transição de gênero” a partir de uma premissa bastante difundida em países ricos (EUA, Canadá, Inglaterra e Suécia) baseada no "consentimento informado", a qual se baseia única e exclusivamente na afirmação das garotas. Consultas psicológicas para avaliar outras possíveis causas de seus transtornos (como depressão, ansiedade ou déficit de atenção) são desencorajadas com ameaças, inclusive médicos tendo clínicas fechadas. Nos círculos mais progressistas uma pequena centelha de dúvida na palavra da criança pode virar acusação de transfobia, inclusive com perda de emprego.
Classicamente, a incidência esperada de disforia de gênero é algo entre 0,005 a 0,014% entre meninos. Em meninas é ainda menor: Entre 0,002 a 0,003%. Trocando em miúdos: Se esses dados são precisos, isso significa uma incidência da disforia clássica de menos de 1 em 10.000 pessoas. No entanto, na última década, conforme o livro discute, a disforia de gênero na adolescência parece ter aumentado expressivamente. Só nos EUA a prevalência aumentou em mais de 1.000 por cento. Ou seja: em vez de um caso a cada mil pessoas, como era de se esperar, estimativas sugerem um aumento de um a cada cinquenta. No outro lado do mundo, na Suécia, entre os anos de 2008 e 2018 houve um aumento de 1.500% em diagnósticos de disforia de gênero entre meninas de 13-17 anos de idade. Coisa similar foi constatado na Inglaterra.
Isso tudo saltou os olhos de muitas autoridades, inclusive pais, e a razão disso é a escalada que ocorre após a menina se reconhecer como menino: primeiro, a troca de pronome; depois, o uso de bloqueadores de hormônios; na sequência, uso de testosterona; e, por fim, cirurgia de remoção de mamas e/ou faloplastia. Isso tudo tem acontecido (pelo menos até a ingestão de testosterona) em meninas com idade a partir de 12 ou 13 anos. Algo que me chamou a atenção: O perfil da grande maioria desses casos são de meninas de classe média/alta, brancas, de família com valores progressistas e com elevado acesso diário a redes sociais.
É bem sabido que a disforia de gênero (pelo menos a clássica disforia) acomete principalmente os meninos e mesmo assim não em taxas elevadas como as que se tem visto hoje. Em um artigo científico recente publicada na renovada revista PLOS ONE, uma pesquisadora chamou esse novo fenômeno de "disforia de gênero de início rápido" (rapid onset of gender dysphoria). A questão é: essa nova disforia é uma coisa real? Talvez, ninguém tem a resposta final ainda. Tem muita coisa explanatória.
 
Algumas leituras extras:
Reportagem sobre os caso na Suécia: https://www.theguardian.com/.../ssweden-teenage...
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# The end of Gender #
(ainda sem tradução)
 
Na esteira do livro anterior, este da neuroscientista e sexóloga Debra Soh é, de certa forma, mais abrangente. O tema não é menos espinhoso também. Mas é mais espinhoso para quem está contaminado com a cabeça no ativismo identitário, vive no twitter, tumblr e só lê Judith Butler e/ou Foucault. No mundo real, eis alguns fatos discutidos no livro:
- Só existem dois sexos na natureza humana;
- Em mais de 99% das pessoas o gênero sexual é idêntico ao seu sexo;
- Sexo biológico não é um espectro (quem acredita nisso confunde característica sexual primária com característica sexual secundária);
- Sexo biológico não é definido através dos cromossomos (XX ou XY);
- Sexo biológico é definido pelos gametas. Na espécie humana só tem dois tipos: esperma e óvulo. Não existe intermediário.
- Reconhecer o fato acima não impede reconhecer a dignidade de pessoas transexuais, pois, sim, existem pessoas que caem nessa classificação, e isso não está em contradição com as afirmações anteriores;
- Pessoas intersexo existem, são em número bastante minoritário, e ainda assim a existência dessas pessoas não entra em conflito com as afirmações acima;
- Pessoas com o gênero identificado como demigênero-fluido, bigênero neutrois, demigirl, aliagender, pangender, demiboy e mais uns outros 70 possíveis (cada mês a lista aumenta) é um fenômeno curioso, mas é, provavelmente, coisa de ativista com pouca curiosidade sobre o mundo.
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# Janelas para a Filosofia #
 
Livros de divulgação científica modernos, em português, e de qualidade, ainda é coisa escasso no Brasil. Este aqui, feito em colaboração com um professor da Universidade de Ouro Preto (aliás, o professor
Desidério Murcho
é uma figura que merece ser seguida nas redes) tenta suprimir essa escassez. A obra é acessível para quem nunca leu algo sobre filosofia, e ainda deixa um gosto de querer mais. Os ensaios discutem temas como valores éticos (subjetivos e objetivos), valores políticos, fundamentos da fé, fundamentos do conhecimento e fundamentos estéticos. Enfim, vários temas de filosofia são explorados aqui. E ainda consegue oferecer um texto que não busca fazer proselitismo em nenhum dos assuntos. Na medida do possível, apresenta sempre uma ou duas versões de pontos e contrapontos de uma posição.
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# Os cinco convites #
 
Descobri esse livro acidentalmente, durante um episódio do podcast do Sam Harris entrevistando o Frank Ostaseski. Frank foi fundador do Zen Hospice Project em San Francisco. Nesse lugar dedicou boa parte da vida explorando o cuidado compassivo em pacientes em estado terminal. Não foram poucas as vezes que eu deixar me levar na emoção dos casos contado pelo Frank. O fim da vida, da nossa ou de entes queridos, nos convida a receber a refletir sobre situações que poucas vezes nos deparamos. Seu livro nos oferece cinco convites para participar desse processo inevitável: Não espere; aceite tudo, não rejeite nada; traga tudo de si para a experiência; encontre um lugar de descanso no meio de tudo e cultive o não saber. Além de nos brindar com conselhos teóricos que valem a pena ser seguidos, nos incentiva a prática da meditação mindfulness. A leitura foi muito agradável.

Os melhores filmes que eu vi em 2020




Seguindo a tradição anual (2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019), divulgo aqui minha lista de todos os filmes vistos. Foram 130 filmes.  Tendo em vista a quase ausência de estreias de filmes em cinemas esse ano, não haverá a lista dos 10 melhores. Dentre os filmes mais recentes vistos, o grande destaque vai para "A casa que Jack Criou", do Lars Von Trier e "Outra rodada ", do Thomas Vinterberg. Não deixa de ser curioso que os expoentes do Dogma 95 retornam em 2020.Outro destaque é "Destacamento Bood", do Spike Lee.

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* péssimo
** regular
*** bom
**** ótimo
***** obra-prima

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Uncut Gems (Josh Safdie, Ben Safdie, 2019) ****
O Homem que Não Vendeu sua Alma (Fred Zinnemann, 1966) ****
A Palavra ( Carl Theodor Dreyer, 1955) *****
Adoráveis Mulheres (Greta Gerwig, 2019) ***
O Caso Richard Jewell (Clint Eastwood, 2020) ***
Democracia em Vertigem (Petra Costa, 2019) **
Não vai ter golpe (Alexandre Santos; Fred Rauh, 2020) **
O dentista ( Brian Yuzna, 1996) **
Green book (Peter Farrelly, 2018) ***
1917 (Sam Mendes, 2019) ***
Arquitetura da destruição (Peter Cohen, 1989) ****
O Joelho de Claire (Éric Rohmer, 1970) ****
Vejo você ontem (Stefon Bristol, 2019) **
What did Jack do? (David Lynch, 2020) ****
Princesa Mononoke (Hayao Miyazaki, 2017) ***
Renegando meu sange (Samuel Fuller, 1957) ***
Parasita (Bong Joon-ho, 2019) ***
La Jetéé (Chris Marker, 1962) ****
Haunt (Scott Beck e Bryan Woods, 2019) **
Os bad boys (Michael Bay, 1995) ***
Sombras do passado (David Hare, 1985) ***
Noites de lua cheia (Éric Rohmer, 1984) ***
Ludwig (Luchino Visconti, 1973) ****
Jojo rabbit (Taika Waititi, 2019) ***
The Green Slime (Kinji Fukasaku, 1968) *
Star Wars: Ascensão skywalker (JJ Abrams, 2019) **
Histórias assustadoras para contar no escuro (André Øvredal, 2019) *
O estranho (Orson Welles, 1946) ****
O Incrível Homem que Encolheu (Jack Arnold, 1957) ****
O poço (Galder Gaztelu-Urrutia, 2020) **
Rembrandt (Alexander Korda, 1936) ***
Luz de inverno (Ingmar Bergman, 1963) ****
Sete minutos depois da meia noite ( Juan Antonio Bayona, 2016) ***
Papai é do contra (David Lean, 1954) ***
Dúvida (Robert Siodmak, 1944) ***
Os amores de Henrique VIII (Alexander Korda, 1933) ***
A Vida e a Paixão de Jesus Cristo (Ferdinand Zecca, 1903) ***
Joan the Woman (Cecil B. DeMille, 1917) ***
Regeneration (Raoul Walsh, 1915) ***
Hellraiser (Clive Barker, 1987) ***
A Máscara do Demônio (Antonio Margheriti, 1964) ***
O Rei (David Michôd, 2019) ***
Coherence (James Ward Byrkit, 2013) **
O relatório (Scott Z. Burns, 2020) ***
Sergio (Greg Barker, 2020) ***
Dois Irmãos: Uma jordana fantástica ( Dan Scanlon, 2020) ***
Onde os fracos não têm vez (Ethan Coen, Joel Coen, 2007) ****
Apertem os cintos, o piloto sumiu (David Zucker, Jim Abrahams, Jerry Zucker, 1980) ****
Planeta dos Humanos (Jeff Gibbs, 2020) **
Eu sou a fúria (Chuck Russell, 2016) **
Chumbo Grosso (Edgar Wright, 2007) ***
Equilibrium (Kurt Wimmer, 2002) ***
Golpe de Risco (Stephen Fung, 2017) **
…E o Vento Levou (Victor Fleming, 1940) ***
Crime sem saída (Brian Kirk, 2019) ***
Um lindo dia na vizinhança (Marielle Heller, 2020) ***
FIRE (POZAR) (David Lynch, 2020) **
A vastidão da noite (Andrew Patterson, 2010) ***
O limite da traição (Tyler Perry, 2020) **
Disque M para matar ( Alfred Hitchcock, 1954) *****
One Child Nation (Nanfu Wang, Lynn Zhang, 2019) ***
A Batalha das Correntes (Alfonso Gomez-Rejon, 2019) ***
O conformista (Bernardo Bertolucci, 1969) ***
Três Estranhos Idênticos (Tim Wardle, 2018) ***
The Old Guard  (Gina Prince-Bythewood, 2020) ***
Sputnik (Egor Abramenko, 2020) ***
Destacamento Blood (Spike Lee, 2020) ***
Culpa (Gustav Möller, 2018) ***
Desejo de mater (Eli Roth, 2018) ***
Disforia (Lucas Cassales, 2020) **
A Misteriosa Morte de Pérola (Guto Parente e Ticiana Augusto Lima , 2014) ***
Tempo de caça (Yoon Sung-Hyun, 2020) ***
Nem Tudo é Verdade (Rogério Sganzerla, 1986) ***
A Linguagem de Orson Welles ((Rogério Sganzerla, 1990) ***
Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (Héctor Babenco) ****
O Signo do Caos (Rogério Sganzerla, 2005) ***
Documentário (Rogério Sganzerla, 1966) ***
Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969) ***
The General (Buster Keaton, 1926) *****
The Play House(Buster Keaton, 1921) ***
Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967) ****
Alphaville (Jean Luc Godard, 1965) ***
Os Inconfidentes ( Joaquim Pedro de Andrade, 1972) ****
Power (Henry Joost e Ariel Schulman, 2020) **
O Cangaceiro (Lima Barreto, 1953) ****
Os pássaros (Alfred Hitchcock, 1963) ****
Invasores de corpos (Philip Kaufman, 1979) ***
Raízes de sangue (Idris Elba, 2018) ***
Invasores de corpos (Abel Ferrara, 1993) ***
Réquiem para um sonho (Darren Aronofsky, 2001) *****
Transtorno Explosivo (Nora Fingscheidt, 2019) ***
Palm Springs (Max Barbakow, 2020) ***
O dorminhoco ( Woody Allen, 1973) ***
Os suspeitos (Denis Villeneuve, 2013) *****
As branquelas (Keenen Ivory Wayans, 2004) ***
Debi & Loide - Dois Idiotas em Apuros (Peter Farrelly, 1994) ****
O Enigma do Horizonte (Paul W. S. Anderson, 1997) **
Lindinhas (Maïmouna Doucouré, 2020) **
365 dni (Barbara Białowąs, 2020) *
A festa de Babette (Gabriel Axel, 1987)
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Um contratempo (Oriol Paulo, 2016) **
Alice não mora mais aqui (Martin Scorsese, 1974) ***
O Diabo de Cada Dia (Antonio Campos, 2020) ***
A última sessão de cinema ( Peter Bogdanovich, 1971) ****
O lobo atrás da porta (Fernando Coimbra, 2013) *****
Belzebuth (Emilio Portes, 2019) ***
Milk: A Voz da Igualdade (Gus Van Sant, 2008) ****
Hillary`s America (Dinesh D'Souza, 2016) ***
Uncle Tom (Justin Malone, 2020) ****
2067 (Seth Larney, 2020) **
Nation's Pride ( Eli Roth, 2009) ***
Borat: Fita de Cinema Seguinte (Jason Woliner, 2020) **
Thelma (Joachim Trier, 2017) **
Kairo (Kiyoshi Kurosawa, 2001) ***
Bronx (Oliver Marchal, 2020) ***
Fúria Incontrolável (Derrick Borte, 2020) **
O gato que ruge (Jack Arnold, 1959) **
A casa que Jack Criou (Lars Von Trier, 2018) ****
Destruição Final: O Último Refúgio (Ric Roman Waugh, 2020) **
Natal Sangrento (Bob Clark, 1974) ****
Tenet (Christopher Nolan, 2020) ***
Psicopata americano (Mary Harron, 2000) ****
2067 (Seth Larney, 2020) **
Vozes (Ángel Gómez Hernández, 2020) ***
O que ficou para trás ( Remi Weekes, 2020) **
Arraste-me para o inferno (Sam Raimi, 2009 ***
O sol da meia noite (Scott Speer, 2018) ***
Outra rodada (Thomas Vinterberg, 2020) ****
Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre (Eliza Hittman , 2020) ***
The painter and the thief (Benjamin Ree, 2020) ***





































































































































































































































































 

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Igualdade de oportunidade implica em igualdade de resultados?


Parte 1: Um Experimento Mental
A noção de “igualdade” convida-nos a alguns questionamentos interessantes, dos quais um deles está ilustrado na pergunta: Igualdade de oportunidade implica em igualdade de resultados? Antes de responder, deixemos claro o que está em causa em cada expressão:
Igualdade de oportunidade: Aspiração ética em prover iguais condições de acesso e oportunidades, na maioria das vezes incentivada por leis que tratam com isonomia todas as pessoas.
Igualdade de resultados: Um ideal de paridade numérica numa determinada atividade com representação, o máximo possível, para os diferentes grupos (étnicos/sexuais, etc.) numa dada sociedade.
Imaginemos o seguinte experimento mental. Um ser onipotente projeta e cria uma sociedade de maneira mais igualitária possível — na acepção acima de igualdade de oportunidades — , e após finalizar sua criação deixa seu experimento acontecer livremente. Consideremos o tempo inicial o momento no qual essa entidade deixa de influenciar nessa sociedade. Esse tempo inicial é como se fosse o início de um filme sendo projetado em um programa de computador. Para efeitos de raciocínio consideremos que essa sociedade mantém viva, em suas leis, o interesse de perseguir os ideais de igualdade de oportunidade. O que se seguirá a partir disso?
Uma resposta preliminar deve reconhecer a tentativa promovida por algumas pessoas de avançar na conciliação de três eixos considerados moralmente relevantes: diversidade, igualdade e liberdade. Se entendermos igualdade como “igualdade de oportunidade”, podemos deixar de lado, para os nossos propósitos, a investigação de eventuais problemas (se algum existe) nessa tentativa conciliação. Por outro lado, não podemos nos furtar de compreender que caso entendamos igualdade como “igualdade de resultados” (doravante também chamado de equidade), teremos problemas de incompatibilidades entres esses eixos morais.
Considere, primeiramente, equidade e diversidade. De forma sucinta, ambas são logicamente inconsistentes, ou seja, não podem coexistir. Se as pessoas são “diversas”, e nós estamos interessados em garantir suas expressões de diversidades, a consequência inevitável do encorajamento da diversidade é a desigualdade de resultados. Quanto mais diversa as pessoas menor é a expectativa de esperar igualdade em relação aos seus resultados. Isso denota a incompatibilidade da equidade com diversidade: Para atingir o ideal de equidade devemos necessariamente eliminar a diversidade, e vice-versa. Dito de outro modo, se assumirmos que as pessoas possuem interesses distribuídos de maneira não homogênea — que é a própria noção de diversidade/pluralidade — , equidade é uma impossibilidade.
O eixo moral da liberdade também fica comprometido, pois não há possibilidade de manter, ao mesmo tempo, liberdade e equidade. Para se obter igualdade de resultados, a partir de igualdade de oportunidade, podemos pensar, de maneira não exaustiva, duas maneiras: i) As pessoas têm todas interesses iguais (ou algo muitíssimo próximas disso) ou ii) as pessoas são diferentes, mas alguma espécie de formatação social os tornam todas iguais. Ocorre que i) é empiricamente falso e ii) é uma possibilidade real, porém indesejável, pois só é alcançável através da violação de liberdades e autonomias individuais com uso de força autoritária.
Podemos nos afastar um pouco do nosso experimento mental idealizado e afirmar que, apesar das incongruências acima, as buscas por igualdades de resultados através de incentivos não são completamente ruins. Algumas atividades humanas ainda sofrem de sub-representação injusta, e os incentivos de equilíbrio não devem ser completamente abandonados. No entanto, as dificuldades acima ainda se mantêm, sobretudo em sociedades livres e democráticas. Como consequência, é esperado, sobretudo na realidade prática, que as desigualdades de resultados observadas sejam também devido a interesses distintos entre os indivíduos, e não unicamente a preconceitos e discriminações (muito embora existam).
       No mundo real a desigualdade de resultados pode se manifestar de variados modos. Dentre eles, um dos mais comuns é a desigualdade econômica. Deixarei de lado esse tipo, mas é bom notar, na esteira das palavras Steven Pinker, que desigualdade de renda não é necessariamente um componente fundamental do bem-estar no contexto do progresso humano. O objetivo prioritário deve ser a eliminação da pobreza, que uma espécie de desigualdade absoluta, enquanto a comparação de rendas médias é um exercício de desigualdade relativa. O mal-estar gerado pela continuação da desigualdade é uma questão secundária perto da urgência da extrema pobreza.  Por outro lado, questões que envolvem as correlações entre desigualdade e violência não podem ser desprezadas. Há muito a se dizer sobre esse assunto, mas não será esta modalidade de desigualdade que será abordada aqui. O tipo de desigualdade que será dada atenção na continuidade não é menos contenciosa: A desigualdade de sexos.
 É bem sabido, e lamentável, a opinião que considera, muito rigidamente, opções profissionais como sendo uma caixinha "para homens" e outra "para mulheres". Nesse sentido, toda iniciativa de algum efeito real de minimizar isso é bem-vinda. Essa é uma explicação, não descartável, do papel cultural afastando as mulheres da ciência. É popular a crença defendendo o sexismo como um dos fatores predominantes operando no desestímulo de mulheres a buscarem carreiras STEM (ciência, tecnologia, engenharia e matemática). Essa crença não é completamente falsa. Por outro lado, é disputável que seja a única, ou inclusive a principal, causa desse fenômeno. Há hipóteses competitivas e/ou complementares necessárias de serem levadas em consideração.
Após técnicas avançadas de estatística, a psicologia encontrou cinco principais fatores da personalidade humana (Big Five), a saber: Abertura para a experiência (openness to experience), conscienciosidade (conscientiousness), extroversão (extraversion), amabilidade (agreeableness) e neuroticismo ou instabilidade emocional (neuroticism) (algumas páginas oferecem testes do Big Five, veja aqui e aqui). A literatura relevante na área sugere a existência de comportamentos típicos dos sexos, os quais as pessoas já observam no cotidiano. Embora alguns temem a alcunha do estereótipo, e não há razões para temê-lo (pois são precisos) e não necessariamente sempre idêntico a preconceito, o fato é que, em média, homens são mais propensos ao risco, mulheres menos; mulheres são mais empática, homens menos; mulheres são mais sensíveis a instabilidade emocional, homens menos. Tudo isso tem relação ao Big Five dos traços psicológicos, e o fato mais sólido observado e bastante  documentado após anos de levantamento de dados é o seguinte: Em média, os interesses dos meninos gravitam para coisas, sobretudo coisas móbiles;  e os interesses das meninas gravitam em torno de faces e pessoas. Dessa forma, autores como Richard Lippa afirmam isso como consequência principal dos homens tenderem a preferir ocupações envolvendo coisas mecânicas e de carpintaria, enquanto mulheres tendem a preferir ocupações envolvendo situações mais sociais, como professoras, enfermeiras e psicólogas. Algo similar é avançado por Baron-Cohen, ao sugerir, em base de dezenas de trabalhos, que o cérebro masculino tende a ser sistematizador, e o cérebro feminino empatizador (Figura 1). 



Figura 1: Modelo de Coeficiente de Empatia do psicólogo Simon Baron-Cohen. Fonte:                 Diferença Essencial.

 
Através do acúmulo de evidências disponíveis (Figura 2) podemos inferir uma diminuição da influência social nessas tendências de escolhas. Quando são oferecidos a meninos e meninas variados tipos de brinquedos, e os deixados livres para escolher, há uma tendência espontânea dos meninos escolherem brinquedos "típico para meninos", e o mesmo ocorre com as meninas. Em outras observações, tem-se visto que meninas passam mais tempo do que meninos prestando atenção em faces humanas. Igualmente interessante são os trabalhos mostrando que chimpanzés fêmeas preferem bonecas a caminhões, e os machos preferem brinquedos móbiles a bonecas com faces. Resultados similares já foram replicados com macacos-rhesus. Embora todas essas diferenças sexuais possam ser tomadas como consideradas pequenas, são suficientes para resultar em diferenças de natureza biológica mensurável entre os sexos. Considerando que em todos esses casos a influência social humana é bastante minimizada, sobretudo nos casos de chimpanzés e macasos-rhesus pois dificilmente estes animais apresentam crenças sociais como as nossas , tudo isso indica pouca influência das sugestões advindas das  teses nomeadas de “construção social”.

Figura 2: a) Distribuição gaussiana da altura observada entre homens (curva à direita) e mulheres (curva à esquerda). b) Magnitudes de diferenças em comportamentos sexuais entre homens e mulheres. Fontes: Gender, Nature and Nurture (Richard Lippa) e Brian Gender (Mellisa Hines).
O "valor d" é um parâmetro estatístico de comparação de diferenças de variáveis. Por convenção, valores positivos estão na direção de favorecer homens, e negativos as mulheres.  Em geral, considera-se que d > 0,8 é alto, d = 0,5 é moderado e d = 0,2 é pequeno. Sendo assim, o valor d= 1,7 encontrado na diferença de alturas é considerado bastante alto. A maioria das diferenças de comportamento sexuais são menores que 1,7. Por exemplo, homens se saem melhor em tarefas de rotação mental de objetos tridimensionais (d = 0.94) e mulheres se saem melhor em tarefas de fluência verbal (d = -0,33). Tipicamente, os valores de d para traços comportamentais são menores do que as diferenças médias de alturas entre homens e mulheres. Portanto, embora diferenças existam,  homens e mulheres são mais parecidos do que diferentes. (Importante notar que essas evidências não mostram que todas as mulheres têm essas características em um nível maior que os homens (ou vice-versa). Ou seja, são médias populacionais e não dizem respeito a indivíduos. Notar também que muitas dessas diferenças entre os sexos são pequenas e há uma intersecção significativa entre homens e mulheres em qualquer característica (qualquer característica da Fig. 2b vai apresentar distribuições gaussianas típicas a observadas na Fig. 2a), e portanto não nos permitem reduzir pessoas à sua identidade de grupo. As diferenças existentes, entretanto, são suficientes para observarmos comportamentos observáveis distintos entres os sexos).

Todas essas evidências apontam na direção de um elemento inerentemente biológico considerável na questão de escolha de profissões. Se isso tudo é verdade, em grande medida parece ser, significa que a verdade não é sexista só porque, em larga escala, as mulheres – em condições de plena liberdade , preferem ocupações que lidem com pessoas e homens preferem ocupações que lidem com coisas. Isso tudo não significa alegar inexistência de pressões sociais e/ou discriminações operando nas escolhas profissionais.
Antes de avançar é necessário pontuar que natureza e cultura não são mutualmente excludentes. Sendo assim, a alegação  peremptória do tipo “gêneros são construídos socialmente” não é menos determinista do que a alegação biológica cromossômica do tipo “homens são XY e mulheres são XX”.  No entanto, é bastante comum a crença no sentido de gênero é construção social, o que não deixa de ser uma alegação determinista no sentido cultural. (Tem sido muito avançada a diferença entre sexo e gênero, mas essa diferença não será abordada aqui. O uso do termo “gênero” é apenas para contextualizar o termo que os proponentes da construção social do sexo utilizam. No entanto, não é óbvio que essa diferença de terminologia seja necessária).
A predição “gênero é construção social” pode ser empiricamente testada. Se for verdade, em condições de igualdade de oportunidades homens e mulheres se aproximariam em escolhas profissionais. Isso tem sido testado, e os dados têm mostrado justamente o oposto do predito pela tese da construção social: As diferenças de escolhas são mais pronunciadas nas sociedades em que a igualdade de gêneros é mais avançada, como nos países escandinavos Suécia, Dinamarca e Noruerga. E não são apenas pontos de exceção, são correlações estatísticas com vários países do mundo (Figura 3): Os países com alta expectativa de vida, altos níveis de alfabetização, educação e renda são susceptíveis de ter as maiores diferenças entre os sexos na personalidade. Níveis elevados de dimorfismo sexual resultam de traços de personalidade de homens e mulheres justamente nos países  menos restritos enquanto condições sociais e econômicas. Em condições sociais e econômicas menos afortunadas, diferenças inatas de personalidade entre homens e mulheres se aproximam.



Figura 3: Paradoxo da Igualdade de Gênero. Quanto maior o Índice de Igualdade de Gênero (eixo y), menor a proporção entre homens e mulheres nas áreas STEM (eixo x).



Uma explicação provável para o fenômeno acima é porque a prosperidade e igualdade trazem maiores oportunidades de autorrealização; assim, homens e mulheres têm o poder de ser quem mais realmente são. Não parece por acaso, portanto, que alguns dados apontam o predomínio de mulheres em áreas de exatas como engenharia na Rússia e na China do que nos países com maior igualdade de gênero como Canadá, Alemanha, EUA e Finlândia. As mulheres americanas e europeias estão entre as pessoas mais educadas, bem informadas, e autodenominadas em toda a história da humanidade. E é plausível a defesa que na Rússia e China há mais mulheres em áreas das exatas muito mais por imposição do que por escolha livre (em comparação, Rússia e China apresentam liberdades mais tolhidas).
Não é o caso de meninas obterem baixo desempenho nas áreas exatas nos países mais igualitários. Muito pelo contrário,  elas apresentam desempenho tão bom ou melhor em comparação aos meninos nas ciências na maioria dos países e, em quase todos eles, as meninas teriam sido capazes de ter aulas de ciências e matemática em nível universitário se tivessem assim desejado. Importante destacar também que estes encontram correlações positivas entre "satisfação pessoal" vs "países mais igualitários" (quanto maior o primeiro, maior o segundo). Sendo assim, é inevitável a conclusão: Os países nos quais as mulheres são mais bem capacitadas (mais "empoderadas") são os que mais as capacitam escolher livremente suas opções de carreiras. A conclusão faz sentido, pois se alguém mora num país mais rico e igualitário, as pessoas são mais livres para fazer suas escolhas em concordância com sua natureza, sem depender de  pressões artificiais de escolher profissões que não lhes agradam, mas muitas vezes acabam sendo valorizadas mais no mercado (como engenharia).
Novamente, isso tudo não deve ser tomado como sugestão para abandonar os esforços de recrutar mais mulheres para as áreas exatas. Tampouco sugere que mulheres que desejam perseguir carreiras STEM devem ser impedidas, pois isso  seria uma discriminação injusta inaceitável. Entretanto, os dados acima ilustram médias populacionais do mundo real, portanto o alerta anterior continua valendo: Liberdade de escolha é incompatível com equidade. Homens e mulheres têm, em média, concepções diferentes do que constitui o sucesso, apesar da insistência pela equidade por impor a mesma concepção masculina de sucesso a todos. Forçar um projeto obsessivo de igualdade de resultados (ou seja, 50% de homens e 50% de mulheres em todas as áreas) poderá comprometer o bem-estar justamente das pessoas que se pretendia preservar.
Parte 3: Engenharia Social
Alguém ainda poderia discordar das observações expostas acima. Ou seja, poder-se-ia continuar querendo sustentar a crença que equidade deve ser um objetivo moral louvável a ser alcançado. Mesmo assim, é ponto pacífico que há formas melhores e piores para isso. Eis aqui uma sugestão notavelmente ruim. Imagine um ingresso em um curso de graduação de Engenharia Elétrica com 30 vagas disponíveis. Após a seleção no vestibular, a composição dos aptos a realizarem matrícula são de 28 meninos e 2 meninas (e isso não parece ser muito distinto da realidade). Imaginemos ainda a existência de suplentes das vagas sendo compostos apenas por meninos. Se quiséssemos forçar uma igualdade de resultados (equidade) poderíamos impedir a matrícula do curso de 26 alunos, deixando, dessa forma, a turma com 2 meninos e 2 meninas matriculadas. Fica óbvio nesse exemplo que na ânsia de solucionar uma pretensa injustiça (desigualdade representativa numérica de sexos na turma), estaríamos criando uma outra injustiça ao impedir a matrícula de 26 meninos competentes para assumir o compromisso.
Podemos ampliar esse experimento. É bem sabido que mulheres dominam numericamente áreas de enfermagem, nutrição e cuidados infantis. Além disso, homens dominam numericamente as áreas de mineração e de pedreiros. O proponente da ideia acima estaria disposto a aplicar a mesmas regras nas profissões de enfermagem e mineração? Nesse caso, será que a mulheres aceitariam de bom grado serem forçadas a abandonarem as áreas cuja elas mais têm afinidade em nome da causa da equidade? Um mundo desse jeito se aproxima bastante do famoso conto distópico Harrison Bergeron, no qual, no final do século, emendas constitucionais obrigaria todas as pessoas serem iguais em resultado. Ninguém poderia ser mais forte ou mais rápido, entre várias outras coisas. Se duas pessoas estivessem em uma sala, e uma delas tem deficiência auditiva, seria obrigado, pela força da lei, que a pessoa sem comprometimento auditivo devesse usar aparelhos que lhe causariam diminuir artificialmente o que escuta. Algumas outras penalidade que as pessoas deveriam se expor: Óculos para diminuir a visão; sacolas com pesos para diminuir a velocidade ou dificultar pessoas mais fortes e mais ágeis; uso de máscaras ocultas para disfarçar a beleza física de pessoas mais belas (quanto mais horrível a máscara, mais bonita é a face). Provavelmente poucas pessoas estariam adeptas a esse tipo de engenharia social, já que parece consenso que a maneira ética de proceder para perseguir o ideal de equidade é através de combater preconceitos e promover incentivos de meninas para seguir as áreas ainda pouco representadas por elas.
Não se surpreenda, entretanto, se houver pessoas promovendo coisas similares ao experimento acima. Recentemente, o jornal The New York Times se mostrou incomodado pelo fato de quase 70% das cartas enviadas ao editor serem de homens. Para solucionar isso decidiram bolar um plano para obter a paridade numérica de cartas recebidas (50/50). A consequência disso é que se algum homem escrever uma carta, independente da qualidade da proza ou qualidade da argumentação, terá  substancialmente diminuída a chance de sua carta ser publicada.  Uma preocupação ética virtuosa não deveria estar excessivamente preocupada com esse tipo de identitarismo. A lição relevante aqui é aquela maravilhosamente propagada pelo Martin Luther King no contexto da luta contra o racismo, com adaptações ao nosso caso: O conteúdo e a qualidade do texto deveria preocupar mais o leitor do que a identidade de quem escreve. Há outras formas de buscar o ideal de equidade, contudo a opção escolhida pelo jornal é bem próximo do exemplo indesejado do experimento inventado logo acima.
Algo curioso do caso do The New York Times é o fato das pessoas escrevem voluntariamente ao jornal, sem nenhum grande impedimento. Pode até ser o caso que algumas mulheres sejam impedidas, ou pouco incentivadas através de discriminações sociais, a escrever para jornais. Por outro lado, não é possível deixar de notar simplesmente que isso pode ser uma atividade na qual homens, em média, preferem fazer mais do que mulheres. Isso encontra reforço em outras evidências, como o fato de que 9 em cada 10 escritores da Wikipédia são homens. Essa é uma atividade típica que mulheres não têm nenhum “teto de vidro” as impedindo de exercer, basta acessar e começar a digitar. No entanto, de maneira geral, parece ser uma atividade bastante divertida para os homens.
O que está em causa é que, em um cenário no qual as medidas anti-discriminação tenham sido tomadas ao máximo (ou seja, garantida de igualdade de oportunidades) numa indústria ou outra atividade qualquer, e ainda persistirem uma representação maioritária de homens, não se segue que a razão disso é exclusivamente advinda de discriminação. Pelo contrário, num cenário desses é possível argumentar em direção a baixa influência de discriminação com relação a admissão de pessoas. Simplesmente pode ser o caso do tipo de trabalho oferecido provavelmente ser mais atrativo para mais homens. O mesmo raciocino vale para as atividades com predomínio feminino.

Parte 4: Liberdade de Expressão
Até aqui já deve ser suficiente para mostrar algumas inquietações emergentes na busca desenfreada pela equidade. Resta observar a possível violação de outro valor muito estimado, porém pouco compreendido: A liberdade de expressão.  Nesses casos, é evidente a tensão entre violação da expressão quando, a partir dela, são dito coisas que ameaçam o sucesso da equidade.
Em tempos recentes, talvez o caso mais notável ocorreu na Google em 2018. O engenheiro James Damore foi demitido da empresa após escrever um memorando alegando que as pesquisas indicam que há mais homem em empresas de tecnologia porque, na média, homens se interessam mais em tecnologia e há influência biológica neste interesse. Uma das expressões mais causadoras de comoção foi o termo " neuroticismo", pois, não sem razão, parece indicar um juízo de valor negativo associado a "mulheres neuróticas". Acontece que, bem ou mal escolhido, o uso do termo não é culpa dele. É um termo técnico bastante usado na psicologia, e significa um perfil de pessoa com alta ansiedade e menor tolerância ao estresse. Muitas pessoas foram apressadas em seus ao tirar a expressão do seu contexto ao julgar o sujeito de sexismo. Parte do jornalismo não se furtou de condenar o memorando de machista. Isso não poderia ser mais mentiroso, pois ele mesmo se manifestou contra discriminações a mulheres, e concorda que elas existem (o texto começa afirmando isso). Acima de tudo, o memorando não era uma prescrição (como o mundo deve ser), mas uma descrição, bastante acurada, que ajuda a explicar a defasagem da equidade em empresas de tecnologia. A questão que fica é: Mesmo que o engenheiro estivesse factualmente errado com relação a suas observações (não parece ser o caso), ainda assim justificaria uma demissão? (Leia o memorando na íntegra e traduzido aqui).
Uma leitura equivocada do caso acima tenderia a pensar que está sendo feita uma defesa preconceituosa ao alegar que uma mulher em um cargo considerado "tipicamente masculino" é biologicamente menos adequadas para esse tipo de trabalho (no caso em questão, de engenheira de programação). Isso é enganador em dois sentidos. Primeiro porque denotaria uma má compreensão das diferenças comportamentais. Essas eventuais diferenças observáveis não nos permite reduzir indivíduos a um grupo. As diferenças observadas são médias populacionais, e ainda há bastante sobreposição entre os sexos desses comportamentos (isso é a consequência de duas curvas gaussianas com certa proximidade em suas médias, ver a Figura 2a).
O segundo erro é porque os modelos de diferenças de sexos são descritivos, ou seja, tendam capturar a realidade. Eles nada dizem sobre prescrição, ou seja, não estão se comprometendo com crenças do tipo “mulher deve seguir tal profissão” e “homens devem seguir esta outra profissão”. Pelo mero fato de descrevermos a realidade disso não se segue que a estamos prescrevendo. Esse é um equívoco infelizmente bastante comum, porém já observado pelo filósofo escocês David Hume no século XVIII. Segundo Hume, não podemos a partir de enunciados descritivos puramente factuais concluir normas ou prescrições de pronunciamentos éticos para se fazer alguma coisa (na filosofia é chamado de Guilhotina de Hume).
Em outro caso recente, o presidente da Harvard, Lawrence Summers, emitiu opiniões similares no sentido de haver diferenças biológicas entre homens e mulheres que ajudariam a explicar a desigualdade numérica delas nas áreas exatas. Algumas pessoas se sentiriam ofendidas e como consequência o presidente foi obrigado a pedir demissão. A pesquisa acadêmica também tem sido alvo de violações desse tipo. Recentemente um artigo foi retratado de um periódico, depois de já ter passado pela revisão por pares, unicamente porque uma petição de 900 pessoas ficou incomodada com as hipótese sobre disforia de gênero explorada pelo autor.
Todos esses casos revelam na prática a inconsistência entre buscar ferrenhamente a busca pela equidade (mesmo que apenas como discurso) ao mesmo tempo que se pretende preservar liberdade. A liberdade em ameaça pode ser tanto aquela ao qual permite as pessoas escolherem suas profissões que mais lhe agradam, bem como a liberdade que é provavelmente a mais fundamental de todas, ou seja, de se expressar sem temer punições desproporcionais. A observação bastante lamentável nesses casos é que os afeiçoados agressivamente pelo ideal da equidade se dizem amantes da liberdade, mas ignoram veementemente que é justamente a liberdade de expressão deles que permite suas ideias possas continuar circulando no mercado público de ideias, por mais incongruentes que elas sejam.
Conclusão
Tendo isso em vista tudo o exposto até aqui, a resposta que obtemos a nossa pergunta original é: Igualdade de oportunidade não implica necessariamente em igualdade de resultados, por duas razões: i) Descritiva, pois é isso o que observamos no mundo real e ii) prescritiva, pois nem sempre devemos eticamente almejá-la; ambas as razões são passíveis de concordância se prezamos valores como diversidade/pluralidade e liberdade. Se acreditamos em diversidade então devemos acreditar na  diferença e liberdade, o que implica necessariamente um afastamento da equidade.